Quarta-feira, 10 de Agosto de 2011

CARMO ISABEL E ANTÓNIO

J T Winic

 

Ela, Carmo Isabel, ele, António. Ela, órfã desde cedo, criada pela avó ‘Mamia’ – petit-nom carinhoso inventado pelos bisnetos, luz dos seus olhos -, madrinha e prima em segundo grau, bem como pelo avô Artur que acumulava funções de marido, companheiro, eterna paixão.

 

Porque nos quarenta do século passado era paupérrima a maioria das gentes, também abundava miséria descalça em S.Cosmado, distrito da Guarda. Quem possuía terreolas e uns tostões ajudava aqueles cuja dieta se limitava a pão centeio, caldo, azeitonas e batatas. Entre outros, a avó ‘Mamia’ e o avô Artur melhoraram vidas fosse através do apadrinhar casamentos e baptizados, da paga nas jornadas campesinas, das copiosas «fatia»*, das merendas que permitiam aos trabalhadores irem pra recato já «comidos»*, fosse pelos empréstimos sem juros e retorno à vista; o emprestado, assim chegassem dias melhores, zelosamente devolvido – a tal chegava a honra que cada aldeão prezava. Caloteiro ou ingrato eram termos malditos. Por isso retribuíam favores com produtos saídos das mãos calejadas. Bastas vezes o avental ou o xaile cobria dúzia de ovos, no cesto galinha ou coelho, cabrito sendo Natal ou Páscoa. Custava aceitar, tamanha a falta sabida no bolso e na panela de quem ofertava. Em troca, folar ou outra lembrança generosa dos padrinhos. Entre generosidades mútuas, os dias corriam.

 

Ao crescer, a prima Carmo brilhava pela formosura morena, pela diligência e pela voz ímpar. O rancho da vila depressa lhe deitou o olho e levou-a à “Exposição do Mundo Português”. Os «lisboinhas» que a viram cantar e seus volteios airosos na dança, gritavam:

_ “Cai nos meus braços, morena do meu coração!”

O rancho arrecadou um dos lugares cimeiros na competição pela fidelidade à cultura popular que representava, a prima convite para actuar em Teatro de Revista no Parque Mayer. Nem hesitou: regressou à terra para os braços do seu conversado António, ex-marinheiro. Haviam de casar e ter um filho. Pela vida difícil, migraram para Lisboa. Alugaram casa no Dafundo, partilhada com outra família pra dividir a renda. Poupados uns dinheiros também na costura, montaram pequena capelista, ela ao balcão, ele como revisor da Carris. Melhorada a vida pela labuta, o petiz foi criado com amor e mimos, estudou em colégio, é homem de sucesso no mundo empresarial espanhol. Habita em Madrid.

 

Tornavam à casa aldeã de S. Cosmado em cada Verão. Primeiro, de comboio, depois no automóvel que luzia. Assomados ao «povo»*, bando de garotagem corria atrás da raridade dum carro na estrada poeirenta habituada a carroças atreladas aos burricos, motoretas e pés andarilhos. E as famílias primas confraternizavam - à volta da mesa, o deleite era a inolvidável sopa de «bagudos»* com abóbora que a prima Carmo servia -, iam comprar novidades, pírex e chocolates a Espanha, beber as cá proibidas Coca-Cola e Fanta, comer paella.

 

Certo é desde há, bem contados, oitenta anos, nunca terem sido quebrados estreitos laços do afecto que ainda hoje une as duas famílias primas.

 

Adendas:

1. «fatia» - refeição servida aos trabalhadores rurais por conta doutrem cerca das onze e trinta da manhã;

2. «comidos» - jantados;

3. «povo» - aldeia;

4. «bagudos» - feijão maduro.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:13
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