Sábado, 10 de Março de 2012

HISTÓRIA DESCONTINUADA

Mikel Glass

        

         Tinha de ligar à Paula ou à Manuela. Do Querubim Lapa e do Mealha nem uma peça expusera nas paredes rugosas. E eram gosto. Gosto dela, harmónico com o dos compradores que a contabilidade traduzia. Pelos laços de amizade e ex-família, talvez o dois ícones da cerâmica portuguesa lhe cedessem cor vidrada nos relevos talhados em barro, depois pintados, depois painel tridimensionado. Talvez um ou ambos pudessem figurar na galeria, sem que fosse preocupação compradores à altura. Egoísta, desejava-os nas paredes como deleite continuado por meses.

         Os catálogos não chegavam. Ordenara esmero na fidelidade das imagens, repetira provas até próximas do ideal. Também daí o atraso.

         Numa pilha, adormeciam envelopes com postais dentro que sublinhassem a distinção do convidado por via do correio. Para os outros, arrebanhados aos molhos no Bcc do arquivo informático, o Santiago engendrara convite virtual bem esgalhado.

         Curioso o Santiago. Menos dezoito anos do que ela na idade. Cabelo desordenado, cãs precoces entremeando o castanho, barba crescida por meia semana sem escanhoada. T-shirt caqui rente ao pescoço, estudo displicente do trajar. Encantador. Atrevido. Olhar quente e dúbio se no momento faziam par concentrado no trabalho de verificar, interpelar, ouvir e dizer.

           Pelos olhares oblíquos que aos meneios da Rute endereçava, julgara reconhecer nele o desejo pela mulher próxima na idade. Contraditos na atenção às coxas dela que, sob o vidro da secretária, a mini expunha bem como a pele além da liga. Exposta pela pequenez da pelica, pela concentração no tanto por fazer que omitia seduções frívolas

           Atenta ao monitor, ainda assim ouvira polifonia no telemóvel da Rute. Surpreendeu-a a saída de raposa astuta. Olhou através do vidro, colada à voz que atendia. Sorriso que, à distância, parecia resposta dengosa. Não era, pela certa, o marido. Tão pouco o Santiago com ela emaranhado em recortes de imagens.

           Que pessoa, homem sem lugar à dúvida, a fizera trocar o espaço aberto da galeria pelo vento frio da rua para atender o telefone? Com a Rute o afecto diluía a hierarquia entre a Luísa patroa e a subordinada. Em casa, o mesmo acontecia com a Célia que lhe sabia dos gostos e intenções e se rebelava contra ordens que somente o cansaço de final de dia rabiscara intrincadamente no bloco da cozinha. Pela destrinça fina, pelo “não me venha com alinhavos que mais sei eu do que precisa e falta”, pela leitura no rosto que de raro em raro coincidia portas adentro, a Célia era patroa e ela, a Drª Luísa, criança mimada.

            Pouco antes da despedida do Santiago, entrou a Rute. Ardor na face que a noite descida injustificava. Pela fala silenciosa que as mulheres dumas e doutras descodificam, soube o não dito. Dispensou a pergunta acinte. Na pressa esquiva da saída, a Rute fugira sem traduzir o alívio do final de dia num “até amanhã, e não demore!” 

            Ao impor negrume ao espaço, ao cerrar a porta e fazer descer a grade de metal cruzado, o frio da cidade e do dia fizeram nada do vestido casaco que o Nuno desenhara revivalista e não a protegia.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 09:01
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