Dona Surprenant –Two Men Praying Mark Young - Unconditional Love
Entrava em casa após um «vou-ali-volto-já» ao minimercado do bairro - para mercearia é demais, para frutaria é de menos, para mercado falta tudo, para supermercado é órfão de pai-monstro com múltiplas cabeças. Evito as grandes superfícies vendedoras pelo cheiro que invento e me enjoa – sinestesia obscura, não duvido!
Dois idosos caminhavam, lentos, pelo passeio. Sentido contrário ao meu. Um saco em cada mão, antebraços semi-erguidos e angulados, transformava acto comezinho em recreio de musculação. Eles e eu quedámo-nos à mesma, minha, porta. Decorreram segundos embaraçosos. Para meliantes faltava-lhes viço, de pedintes não tinham o ar encolhido e sabujo. Enquanto apalpava os bolsos, pediram autorização para entrar. Ainda a chave procurava o lugar do “Abre-te Sésamo” e começou diálogo (im)provável para quem, por dez minutos, interrompera a doçura doméstica para comprar nozes e avelãs – o resto foi acréscimo que não rabiscara no post-it mental.
De oitenta para cima, o mais velho apoiava na bengala o esqueleto ressequido até metade do que um dia foi. O outro, vivendo dos setentas a metade superior, não tinha esvaído, por inteiro, a robustez do corpo alto, esguio e bem apessoado. Apresentaram-se com a dignidade de cavalheiros num salão - podiam ter dito “a menina dança?” e não arregalaria os olhos de espanto. Mas ouvi: “A menina aceita ouvir a palavra do Bem?” Por amor à verdade hesitei no remoque: “tenha a fineza de me somar décadas!” Optei por silêncio compassivo que à bondade/estratégia dos interpelantes não diminuísse efeito. “Acredita na Bíblia?”, e eu nem que sim nem que não; ainda remoía o facto de avançados os anos, quem deles se atrase, um que seja, merecer epítetos de “miúdo”, “jovem”, “rapariga/rapaz mais novo que eu”. “Permita que lhe ofereça este fascículo baseado na Bíblia”. Aceitei e começaram, apartamento a apartamento, o périplo catequista. Antes a novidade dos ‘dandies’ idosos do que duas reformadas devotas de pudim flan, de conversas vazias e cheias de piedade e compreensão e de queixas de doenças e de solidão e do marido rabuja e do filho que nem casa nem gera netos que constem nas fotografias gastas pelo uso que trazem nas malas de mão.
Que leva humanos a ensaiarem na fase final da vida a carreira de profetas? A optarem por dias apostólicos, disseminando nos bairros presumidas verdades? A trocarem jogatinas de bisca e damas em recato aconchegado pela venda, porta-a-porta, das palavras de um Deus? E enchem as igrejas nos rituais comunitários que, uma vez por semana, lavam almas para depois as preencherem com exaltada fé em aléns.
Quando em cada acordar a desesperança sobe ao mesmo tempo que a persiana do quarto onde revolveram insónias e cobertores, são excessivas as horas pela frente. O pequeno-almoço na casa vazia ou no lar-depósito, a contagem dos comprimidos, a televisão por companhia, o almoço a meio-sal, a sesta entremeada de receio pela ausência ou presença indiferente, vezes demais violenta, dos filhos. Poucos são os idosos que a família, quotidianamente, pode ou quer envolver num abraço quente em afecto. E refugiam-se nas igrejas, mais por medo do que por fé antiga. São os crentes de última hora. São os que na terra já vivem no além. Que carimbam nas missas o passaporte para emigrarem dos anos do vazio para uma eternidade redentora. Assim seja!
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros