Sexta-feira, 27 de Maio de 2011

CARA DE BONECA

Jan Bollaert

 

Quando ela entrou para o comboio, já vinha com cara de boneca. Rosto quadrado, lábios quase sintéticos, olhos escuros, meio encobertos pela franja perfeita de um cabelo que parecia peruca. O único movimento que traía a sua fisionomia de brinquedo era o contínuo mascar de uma pastilha, que resistia apesar de sucessivamente esmoída pelos movimentos basculantes do maxilar inferior.

Encostou-se junto à porta, na posição de máxima interferência com a saída e entrada de passageiros, e iniciou o processo. Qual processo? O de se embonecar ainda mais. Tirou da bolsa um estojinho, abriu-o e, com um pompom, aplicou um pó qualquer sobre o rosto. Fê-lo com movimentos precisos, conduzindo com destreza a almofada pelos contornos faciais, várias vezes sobre cada ponto, até dar-se por satisfeita.

Mas o serviço não estava completo, longe disso. O estojo voltou para dentro da mala e, em troca, surgiu o pincel - não um qualquer, mas um desses de cabeça larga e pelagem fofa, bom para tortura nos pés. Com a mesma habilidade, a rapariga valeu-se do utensílio, em garbosas pinceladas nos cantos essenciais da face.

Eu, sentado a meio da carruagem, na minha posição de moribundo matinal, já começava a quedar hipnotizado pela cena. E mais ainda fiquei quando o pincel foi fazer companhia ao estojinho e da bolsa emergiu uma espécie de caneta grossa, como um bastão de cola. Não colava, mas preenchia. O quê, não me perguntem, pois a pele da miúda, congruente com a sua idade, ainda estava despida dos vales epidérmicos da progressão etária. Mas ela lá sabia, e entreteve-se durante alguns minutos a retocar alguns pontos invisíveis de imperfeição. O que ela fazia com aplicações leves e cirúrgicas, eu não conseguiria nem com duas demãos de massa de pedreiro.

O comboio já ia a meio do caminho, com mais passageiros em pé do que sentados, incluindo o meu objecto de estudo naquele dia. Cogitei onde ela trabalharia, para ser precisa tanta maquilhagem. Intrigava-me também como o constante esforço na mastigação da pastilha não comprometia o revestimento facial recém-aposto.

Mas a rapariga não dava tréguas para reflexão profunda. Era um produto atrás do outro que saía daquela mala. Depois da caneta grossa, veio outra, fininha, para o contorno dos olhos. A seguir, um lápis para o lado externo da pálpebra. Depois, outro para a borda interna da mesma. Uma escovinha de pentear as sobrancelhas. Outra para os cílios. Uma coisa qualquer para a testa. Batom. Brilho. Reforço. Lustro.

Quando eu julgava esgotadas todas as possibilidades, ela avançou para o cabelo. Uma escova para alongar, outra diferente para enrolar a franja. Um espelho para os retoques finais. À chegada do comboio ao Cais do Sodré, estava no spray, aplicado sobre a sua arquitectura capilar e o ombro do passageiro ao lado. Desceu na estação terminal com mais cara de boneca do que quando entrara e deu com uma amiga, que também vinha no mesmo comboio.

- Olá, estás boa? - disse e cumprimentou-a com um beijinho, daqueles em que apenas as bochechas se tocam. Temi que as duas ficassem para sempre com a cara colada. Mas não, havia muita ciência naquela maquilhagem.

 

Nota - “Cara de boneca” por Ricardo Garcia com a prestimosa ajuda do António a propósito do texto aqui publicado “Batom-Cola” no dia 18 de Julho de 2010.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 07:09
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