Pelo amor do natural em forma de azul recortado longe deixo-me ir, restar horas a fio perante o deslumbre do brilho, da ondulação que a produz, do sol que a compõe, da Lua invísivel que a determina. O sorriso é desenhado espontaneamente na face. Traduz alegria, privilégio que o visto impõe, arrebatamento do íntimo em seu recanto que poderá contar.
A perfeição existe em muitos lugares da Terra. Memórias arrecadadas com fundos, à partida, improváveis, depois provados e gozados e lembrados. Tantas vezes mares, tantas vezes belezas que somente pincel talentoso e paleta recheada de óleos multicolores, assim o talento existisse e pudesse recompô-los na forma concreta e abstracta do exactamente.
Sandálias com dezena de anos que os pés confortam e permitem andarilhar. Mar quase soalho. Um esticar da perna e a temperatura marítima ela calcula. Mar sereno que o motor não transtorna visto de frente, ensarilhado quando visto da popa.
Marina imponente pelo desenho e embarcações acostadas. Olhei-as sem inveja. Transbordei alegria, porque magníficas e reais. Depois, sentada na beira, estiquei os dedos para o ondular que levantavam. Doce rumorejar, afago oceânico que a mulher tornou feliz.
Já o Sol descia, dali não arredava. Procurei rochedos, águas revoltas em seus esconderijos; de novo, quis saber pelo tacto como funduras rezingavam. Num e noutro lado experimentei sensações – algumas conhecidas, outras não. Nestas, fixei sentires. Em píxeis foram registados caso acontecesse a memória apagá-los.
deixo-me ir (ali, com tanto mar... não deve incomodar) da ondulação que a produz (a ela, claro... ou talvez não?) do sol e da Lua (compondo-a e determinando-a, a ela?) da temperatura marítima e da perna que a calcula (a ela!) do afago oceânico que faz a mulher feliz (sem dúvida, a ela!) dos pés, dos dedos, das sandálias (que já se conhecem há 10 anos!) dos 2 lados onde experimentou sensações (conhecidas e estranhas!) dos rochedos (onde o mexilhão é a eterna vítima!) do motor (que só revolta o mar atrás, sereno na frente!) dos píxeis (que fixam sentires, caso a memória os apague?)
tudo extraordinário! ordinário... só eu! cai o pano... levanta-se a Lua e fica-se aluado... até o sol nascer de novo.
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Auto-Entrevista:
1.
P. O Homem do Turbante Verde é, de novo, um livro de contos. Trata de quê?
R. Eis a típica pergunta da preguiça. Apetece sempre responder: «do que está lá dentro». Mas dada a consideração que tenho pelo perguntador, sempre direi que é um livro de contos de certa duração que se divide, não por acaso, em quatro partes. Na primeira percorrem-se mundos imaginários de guerra no deserto e aventuras na savana. Na segunda, faz-se a crónica duma juventude que honrou este país, com candura e generosidade, duma forma que mereceria maior reconhecimento (até mesmo pelos próprios, já crescidos). Na terceira, transtorna-se um quotidiano de rotina pela irrupção da estranheza e do fantástico. Na quarta, atravessa-se um mundo ameaçador de crueldade, delírio e paranóia;
2.
P. Este título, O Homem do Turbante Verde não tem nenhuma aspiração a originalidade, pois não?
R. Não senhor. É um expediente pura e declaradamente literário. Um tributo à ficção. Ocorrem-nos logo O Homem que Via Passar os Comboios de Simenon, A Rapariga dos Fósforos de Cardoso Pires», A Mulher de Branco de Wilkie Collins, As raparigas de Sanfrediano, de Pratolini e, no cinema, O Homem do Fato Claro, O Homem do Fato Cinzento, A Rapariga da Mala, e um nunca mais acabar de homens, mulheres, raparigas e rapazes de que me lembrarei amanhã…
Como não é raro (e acontece, por exemplo, em A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho), um dos contos dá o nome ao livro.
O todo (pode ser impressão minha, o leitor dirá) articula-se num conjunto multifacetado que ele próprio faz sentido.
3.
P. Há quem diga que os vertiginosos tempos de hoje não permitem leituras prolongadas. Foi por isso que escreveste um livro de contos?
R. Essa afirmação, salvo o devido respeito, é um tremendíssimo despautério. Uma das incomodidades que tem este mester é ver fervilhar em volta as tretas, muitas vezes ditas por profissionais da área. Tenho prometido a mim mesmo escrever um dia, se tiver paciência, um Grande Livro das Lérias e das Tretas para que não faltará material. Quem se dedica à Física Nuclear, ao Direito, ou à Arquitectura está seguramente mais defendido dos dislates. Mas, ao que parece, todo o bicho careta se sente à vontade para proferir opiniões literárias.
Os textos do Harry Potter ou de O Senhor dos Anéis (para mencionar sucessos recentes) são túrgidos como bíblias. Alguns desses autores kitsch que vejo por aí a querer vender desmesuradamente são autênticos empilhadores de páginas.
Escrevi contos porque é um dos meus trilhos, porque sempre escrevi contos, porque me apeteceu, porque chegou a altura, e porque sim, quia leo nominor. Não para condescender com a suposta vertigem-dos-tempos em que ouço falar desde miúdo.
Aliás, um dos efeitos estranhos desta deliberada ablação da memória a que o capitalismo tem procedido ultimamente é que nos são sistematicamente apresentadas como novidades coisas que já eram decrépitas antes de nascermos.
4.
P. Mas, afinal, Quem é que lê contos hoje em dia?
R. Toda a gente. Algumas das grandes obras da literatura mundial são contos.