Chin H. Shin, Virgil Elliot
Faltava o café para terminar mais um almoço na catedral gastronómica de Gouveia, “O Júlio”, assomo ao exterior por instantes pensados breves. Na rua estreita, sem trânsito automóvel, terminada em degraus para quem sobe, esplanada prolonga restaurante e café do mesmo dono e nome, quase em frente um do outro. O dia quente pedia intervalo em que a brisa tímida lambesse a pele. Daí a saída.
Tomado assento no silêncio da ruela, ao fundo e subindo com vagar, a Sr.ª D. Luzita Manta. Vinha tomar café, parte da dose de adrenalina diária que os portugueses não dispensam, como escreveu Robert Wilson. De pronto, levantei-me. Fui ao seu encontro. O reconhecimento não foi imediato – as três semanas de férias serranas nunca proporcionam cumprimentar todos aqueles de quem gostamos. Olhando-me, atenta, nem meia dúzia de segundos passados, diz:
_ Brojo!
Aquiesci, já entre abraço e beijos amigos. Perguntando pelas mulheres mais velhas da família, houve o que “sim, estavam bem, na altura debicando sobremesa que desde a infância lhes enchia medidas – papas de milho”. No entretanto, surge a filha mais velha, Emília Manta, para muitos, contando-me, a querida ‘Mila’, ‘Milita’, ‘Milinha’. Repete-se a alegria e, enquanto a mãe fazia companhia à mãe e à tia, ficámos em alegre converseta. Conhecendo-lhe o acerto do espírito crítico e atento, atrevi:
_ Aturas-me para detalhares as lutas dos operários de lanifícios daqui nos anos sessenta e setenta?
_ Quando quiseres; porém, devias conhecer a Maria do Céu, essa, sim protagonista e conhecedora mais profunda.
Como soe afirmar, palavras não eram voadas, desce a escada Maria do Céu Ferreira de Jesus. Foi impressiva a presença – mulher elegante, ponderada, olhos negros que reluzem. Sendo informada de quem eu era e ao que vinha, acordou num encontro a três, pelas cinco da tarde seguinte em casa da Milita, porta à frente da que flanqueia entrada para edifício de granito onde nasceu o tio-avô, o pintor Abel Manta, ícone das artes plásticas nacionais a que Gouveia não regateou tributos como seu filho genial.
À hora e dia aprazados, subo os degraus de madeira cheirosa e brilhante pela cera. Logo após, entra a Maria do Céu que tanto me intrigara e, selvaticamente, admirei. Na saleta fresca, decorreu a conversa e, pela ausência de gravador, digitado o ouvido.
“Nasci em Gouveia. Ainda pequena, fui para o “Patronato”, instituição dirigida pela D.Zulmira Bellino, mulher do dono da fábrica de lanifícios “Belina”. Na casa repartida em secções – primeira infância, segunda e jovens adolescentes que não frequentavam a escolaridade/luxo para os débeis proventos -, eram ensinadas «prendas» femininas da época: limpar, lavar roupa e chão, pô-lo lustroso, bordados, rendas, tricô e outras artes que das meninas fizessem esposas perfeitas e mulheres submissas. Muitas operárias deixavam ali as filhas enquanto labutavam, em pé, oito horas diante das máquinas fabris.
Frequentei o “Patronato” até aos dezasseis anos. Também a JOC – Juventude Operária Católica. A origem social de cada membro determinava estar e percurso, e influiu no meu idear social. Em 1963, por vontade minha candidatei-me a operária da Sociedade Industrial/Amarantes e fui admitida na tecelagem predominantemente masculina. Ambiente de pessoas conscientes da opressão, repressão e exploração que as vitimava. Solidárias, todavia. Dispostas a emperrar, subtilmente, o sistema, existindo colegas injustiçados. Prova houve com o “trabalho por objectivos”: eram premiados aqueles que muito produziam. Falsa questão, constatámos; trabalhar «corte» liso é rápido, um de xadrez demorado. Horas de labor idênticas, produtividade diferente. Sabíamos que na distribuição dos «cortes» eram jogadas simpatias hierárquicas. Como reagir? _ Simples: eram somados os prémios e divididos de igual maneira por todos. Entendia, vividamente, num lado estar o capital, no outro a força laboral.
Escasseando trabalho, o operário laborava seis dias e ganhava quatro. Na “Sociedade Industrial”, era majorada a repressão se comparada com outras. A adesão à EFTA e a guerra colonial aumentaram vertiginosamente as encomendas, mormente pelo fabrico de têxteis destinados ao fardamento das Forças Armadas. Entre sessenta e sete e sessenta e oito, os patrões chamavam trabalhadores da Covilhã de molde a satisfazer a produção. Aumentaram conflitos; prática comum laborar sob chicote, ameaças e castigos – sendo crianças, duplicados pela ausência de «féria» devida ao afastamento compulsivo, pelos pais que sentiam no bolso a falta de ajuda para alimentar as bocas da família.”
(Continua)
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros