Autor que não foi possível identifficar
Na escola primária de granito com recreio amplo em terra batida, decorriam brincadeiras que ainda hoje as crianças têm. Cansada das comuns, a menina que seria minha tia e freira resolve brincar às missas. Meninas de joelhos, pés tapados com lenços como viam às mulheres que, pela ajuda das saias compridas, na igreja faziam o mesmo. A tia atamancou um dos sermões do tio-avô padre António da Ordem do Espírito Santo que fez de África o seu amor. Levantados os braços, disse com pompa na voz e na postura:
_ “Escavai bem escavadinho e encontrareis gotinhas de água.”
Reclamando os ouvintes por ali dela não haver vestígio, foi transferido o sermão para a ribeira da Ponte onde água não faltava. Consta terem chegado a casa encharcados os petizes.
No outro lado da aldeia, a ribeira do Muchata era tentadora: margens livres e planas, ervadas, algumas rochas pelo meio da correnteza mansa a pedirem saltos para a água. As mulheres do lugar lavavam roupa, estendiam-na e deitavam olho à pequenada que por ali cabriolava. A futura senhora minha mãe era terrível pela ousadia nas brincadeiras. Provas várias deu para inquietação dos pais e de quem dela se encarregava; amainaria na adolescência ao ter-se por menina/senhora. Entre as traquinices é contada a de fazer escorrega dum penedo alisado pela erosão e que à água da ribeira determinava remoinho. Supunha, como de costume, ser capaz de parar a tempo, repetir subidas e descidas vezes a fio sem molhar as extremidades das sandálias. Num impulso mais arrojado, estatelou-se na água. Quem dela tomava conta, numa corrida foi a casa avisar a mãe, a doce avó ‘Mamia’. Não só proibiu muda de roupa que à filha cobrisse, como, sem delegar em ninguém a tarefa, foi buscar a infractora. Num canto, amarfanhada pelo medo e frio, a garota esperava. Firme, a mãe fê-la atravessar o povoado, humilhantemente embrulhada em toalha que nos arbustos secava. Os anais familiares garantem não ter repetido a graça.
O sol e o degelo e o despontar dos verdes anunciavam, breve, a Primavera. Na varanda com sacada de ferro torcido em curvas caprichosas, entretinham-se as duas irmãs. A mais velha, um mês faltava para chegar a dois anos a diferença na idade, na sua pequenez cantava enquanto a irmã fingia tocar:
_ “Toca a «coneta» nossa menina!”
A ‘tia Amélia’ à janela, habitual posto de vigia, conquanto se afirmasse eternamente amiga da família, não conteve o sangue venenoso:
_ “Olha o padre-nosso e a avé-maria que a mãe lhes «enxina» de «noute»!
Noutras vezes, e porque tinha pouco apetite, a mesma das manas refugiava-se em casa da tia Amélia que cozinhava na lareira o pouco de que dispunha; os filhos comiam sentados no chão em paródia desmedida. Ali, a garota não escusava alimento fosse ele qual fosse, quantas vezes enviado pela mãe para matar a fome da filharada em frente. Feliz por ver a petiza alimentar-se com gosto, assomou ao balcão:
_ “Ó senhora dona Belmira, venha cá ver a sua filha comer como uma «marraninha»!”
Certo é ter conhecido sempre encurvada e idosa a senhora Amélia. O tempo suavizar-lhe-ia defeitos e acrescido benevolência.
Ainda sobre a futura senhora minha mãe. Destemida, brincava com meninos e meninas, mais cobiçando carrinhos que as bonecas do quarto. Ao Armando da comadre Maria aprazia provocá-la:
_ “Não te chegues que és menina de mimo!”
Resposta pronta:
_ “Serei, mas aposto que não sabes dançar a «marcoliana» como danço com o meu pai.”
E se a dançava bem! O pai tentava segurá-la para conversa e possível castigo, enquanto a pequenota rodopiava como enguia em redor dele.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros