Quinta-feira, 14 de Janeiro de 2010

DO LUTO AOS GRILOS

Henry Lee Battle

 

Quando a Terra geme e suspira, acomoda zonas íntimas pressionada por forças. De tensas, afastam placas, qual capa de tartaruga invisível. Colidem ou sofrem torsões. As rochas, que rejeitam elevada condição elástica, eliminam a energia potencial em excesso. Libertam-na como fisga esticada ao máximo que retoma forma comum. E vão ondas por aqui ou ali. Regiões que as apanhem contam sustos e danos. Gentes soçobram. Patrimónios destruídos. Vidas sem eira ou beira que as recolha pela elevada intensidade do arrumo. Catástrofe natural como outras que, igualmente, apagam o construído em anos por mãos laboriosas de quem fenece com a obra.

 

No drama, que a esperança se aninhe após o luto. Que não sejam também destrutivos espíritos sobreviventes como os nossos assentes numa plataforma mantida em relativo sossego. Mesmo sem tragédias de monta abrangendo milhares de portugueses, resistimos a acreditar no bom advir. A albufeira do Alqueva é exemplo. Muitos tomados por sábios, mas ‘velhos postados no Restelo’ garantiram que jamais a capacidade máxima seria atingida. Foi. É o maior lago artificial da Europa. Cumprido o primeiro objectivo do projecto Alqueva: “reserva estratégica de água, com capacidade para fazer face a três anos consecutivos de seca, com garantia de disponibilidade para abastecimento público, agricultura e produção de energia".

 

Parecemos grilo comum que, sem polinizar, engole flores. Verdade aberta à excepção de uma variedade da família “Glomeremus”: não tem asas, mede entre dois a três centímetros e possui antenas largas. Trata carinhosamente orquídea onde poise – transporta o pólen e ajuda-a a procriar. Assim fossem benévolos os ajustes terrestres!

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

Haiti

 

Quando você for convidado pra subir no adro da
Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam
estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de
meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

 

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

 

E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

 

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

 

publicado por Maria Brojo às 06:30
link | Veneno ou Açúcar? | favorito
8 comentários:
De Vera Y Silva a 14 de Janeiro de 2010
Mesmo com um terramoto aqui, e sabendo que esta zona não é muito recomendável, o Haiti não seria aqui. Naquele país a miséria e a desgraça está infelizmente noutra dimensão.
De zeka a 14 de Janeiro de 2010
Terra de Amor Desigual (ou sem amor?). Se também ali pudesse haver um Desmorrer...
De zeka a 17 de Janeiro de 2010
"O homem faliu. Trata-se de uma espécie que não deu certo..."
Nelson Rodrigues

Réquiem por Zilda Arns
http://www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp?source=DYNAMIC,blog.BlogDataServer,getBlog&uf=2&local=18&template=3948.dwt§ion=Blogs&post=263921&blog=630&coldir=1&topo=3994.dwt

Resettle Haitians in Africa: Senegal president
http://news.yahoo.com/s/afp/20100117/wl_africa_afp/haitiquakesenegalaid_20100117121432
De Maria Brojo a 18 de Janeiro de 2010
Vera Y Silva - não foi minha intenção comparar o incomparável. O poema surge pelo contexto histórico em que foi escrito: reinava o Papa Doc e o Brasil era realidade subordinada a atitudes semelhantes.
De zeka a 14 de Janeiro de 2010
Quanto à excepção dos grilos roucos (craspy crickets) creio tratar-se de uma descoberta actual... que Darwin já tinha intuído há quase 2 séculos.

Mas o grilinho, não foge à regra... vai mesmo é à procura de néctar. Ficam os 2 a ganhar ;-)

Se déssemos crédito à Natureza mais depressa, antes de provar que os desequlíbrios se 'pagam' com elevadíssimos 'juros'... talvez ordenássemos as metró poles com maior desafogo.

http://www.oeco.com.br/salada-verde/38-salada-verde/23263-o-grilo-que-poliniza

http://www.livescience.com/common/media/video/player.php?videoRef=LS_100112_CricketPol
De Maria Brojo a 18 de Janeiro de 2010
Zeka - e quais os erros que não se pagam com juros avaros? A (des)Ordenação das metrópoles e das governações também por desorganizarem gentes e recursos que desbaratam.

Pasmei com o visto.
De António a 15 de Janeiro de 2010
é, merece uma pausa...

as proporções da catástrofe agigantam-se à medida que nos aparecem as imagens indignas da devastação

o planeta é uma ínfima partícula de poalha em órbita na imensidão dos tempos e os seres humanos são uma fracção errática e mínima perante as manifestações da natureza

mas custa muito perceber que a mesma ilha reage de modo diametralmente diferente a um terramoto violento: na República Dominicana, as estruturas aguentaram e a clarividência impôs-se, foram os primeiros a clamar por ajuda internacional imediata; no Haiti, a imprevidência humana de sucessivas gerações submetidas a sucessivos déspotas (onde estão? perguntava um cidadão indignado) transforma a catástrofe em tragédia irremediável

oxalá a pronta ajuda humanitária internacional possa deixar a semente de uma nova ordem que elimine o ciclo vicioso de submissão e caciquismo que há séculos terrifica o Haiti


De Maria Brojo a 18 de Janeiro de 2010
António - entendeu-me. Esclareceu. Acrescentou. Hufff! É refrescante após tantas pancadas recebidas até aqui. Merecidas em parte, é facto.

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