A culpa da entrada do tabacum na Europa nem pertence ao cavalheiro Jean Nicot que escolheu Portugal para viver. O senhor limitou-se a enviar à sua rainha, Catarina de Médicis, folhas de uma planta que, bem fumada, podiam curar as enxaquecas das quais dolorosamente padecia. A corte de médicos que a rodeava desistira de encontrar remédio para a real maleita. Línguas viperinas afirmam que as enxaquecas se Sua Majestade continuaram, mas que jamais desistiu de inalar o fumo da planta. Visto o facto ou lenda à distância, melhor teria feito em generalizar o uso da tanga indígena dos povos da América Latina onde as folhas cresciam. A história afirma ter sido o corsário inglês Sir Francis Drake a trazê-las para Inglaterra - ao tempo, ladrões atingiam o grau de Sir; então, como agora, logram ser administradores públicos, ministros, deputados, empresários de renome. Indesejável atavismo!
O Senhor Jean Nicot acabaria por dar nome científico de baptismo à miraculosa planta que anestesiava assim, assim, e conferia prazer às fumaças: de Nicotiana passou ao descaro de Nicotina. Para sempre o desgraçado embaixador teve o seu nome associado a veneno lento. Ignoro se o homem era pecador convicto e a herança foi castigo de homens inspirados por diabo à espreita.
Como é comum nos recuos históricos, consta que Trinidad Tobagum foi nome imposto a uma das terras achadas por Colombo por os nativos aspirarem o fumo através de instrumento chamado tabacum proveniente do Haiti. De modo parecido, o Caribe é Caribe por ter forma de cachimbo.
Depois do charuto, em 1840, surgiu o cigarro já afastado o seu consumo de qualquer finalidade terapêutica e meramente associado ao prazer. A Primeira Guerra Mundial proporcionou uso e abuso da nicotina e os primeiros registos dos seus malefícios. Entre mortos, feridos, destruição e canhões predadores, iniciado percurso científico que tornou indesejáveis cigarros, cigarrilhas e afins. Na desgraça, ao menos uma herança boa.
Todavia, teimo: o prestimoso cavalheiro Nicot não merecia ser padrinho forçado da prazenteira substância assassina.
Parece que fui aqui chamado... e vou ter por onde pegar.
As minhas primeiras fontes levam-me aqui:
«A palavra cachimbo, que usamos em português, veio da língua africana bundo, ou quimbundo (Angola), na qual o cachimbo se dizia “quixima”.
Tabak era uma palavra da língua caribe, falada pelo povo Caribe, habitante das Caraíbas. Na sua língua “carib” significava “inteligente”.
Não se sabe ao certo se eles chamavam “tabak” ao cachimbo, se às folhas da erva do tabaco, enroladas como os cigarros, para fumar.»
Onde está o tal Caribe em forma de cachimbo? Tem coordenadas ?
Segunda, pode ser esta:
predador (latim praedator, -oris) adj. 1. Zool. Que vive de presas. 2. Bot. Diz-se duma planta que vive à custa doutra. s. m. 3. Animal que se alimenta atacando outros seres vivos para os matar e se alimentar da sua substância. 4. Didát. Homem que se alimenta dos produtos da caça, da pesca e da colheita.
Assim sendo, onde entram os tais canhões?
Se estas fumaças (com o povo sereno!) forem dissipadas... tratarei doutras (que las hay!).
a crítica é inteiramente legítima - mas será interamente justa?
«predador» tem significado mais rico e vasto que o(s) indicado(s) na fonte consultada; assim, há dicionários que permitem inferir do acerto da expressão "canhões predadores", no sentido prosaico de acção destrutiva, como é também facilmente entendível no contexto
mas a interpretação de um texto e das expressões com que é construído sai muito empobrecida se nos apetrecharmos apenas com um dicionário, mesmo que seja melhorzinho - é que, tal como a vida, aliás, uma crónica tem muito mais do que sinónimos, há um valor que resulta directamente do espírito e sentido oferecido ao leitor/interlocutor e à sua percepção cultural, aos seus sentimentos, à sua experiência, invocando e convocando bem mais do que um dicionário pode oferecer
e mesmo uma fragilidade, porventura aparente, no que respeita aos sinónimos, às gralhas, aos erros ortográficos, ao estilo, à correcção da redacção, ao ritmo ou à homogeneidade/diversidade da audiência, tem que ser adequadamente entendida e compensada pela riqueza e o alcance da mensagem, que importa surpreender e apreender
claro que são sempre bem vindas as observações, mesmo que não sejam instrumentais nem principais, sobre todos os aspectos, incluindo as gralhas, pontuação, ortografia e sinonímia, etc, pois aprendemos sempre bastante mesmo que se recorra a meras transcrições de fontes mais à mão ou mais às teclas
no caso, "canhões predadores" é uma expressão poderosa em termos de comunicação (e não apenas de modo metafórico) e faz jus a uma outra expressão poderosa que é "carne para canhão"
foi bem empregue, faz todo o sentido e é talvez das poucas expressões da crónica que não é empatativamente retirada directamente de textos disponíveis na internet
E a defesa é brilhante, a todos os títulos, deixando-nos enriquecidos com o saber e o saber comunicar exibidos.
Mas, há também a sensibilidade (de quem escreve e de quem lê, ambos interpretando o porquê daquela palavra naquele contexto).
E a palavra é uma arma, que só em último recurso deverá ser desapropriada, a que estiver mais à mão, em defesa de força maior, custe o que custar. Mas não matarás uma mosca com uma carabina, muito menos com um míssil.
Quanto ao 'sentido prosaico de acção destruidora', encontro dificuldades em ver ali o prosaico, depois de referir 'Entre mortos, feridos, destruição e canhões predadores, iniciado percurso científico...'.
Se fizermos mais ataques e defesas deste estilo a outras agressões feitas no texto, 'as línguas viperinas' serão altamente benéficas para as nossas divertidas passagens por estas bandas, não causando mortos nem feridos, antes pelo contrário. ;-)
Predadores são os homens: http://www.youtube.com/watch?v=e6KtJCgSMSA
em defesa do ataque bem defendido e assim por diantemente:
ora bem, a palavra-arma, como no punhal de Eugénio de Andrade, seria bastante para justificar plenamente o recurso aos canhões predadores
mas o sentido prosaico de acção destruidora não pode ser encontrado entre mortos e feridos, se é que é complexo (e pode sempre sê-lo ou parecê-lo) o desenho de todo um campo de batalha em duas ou três palavras - o prosaico do sentido está incorporado na própria expressão, porque o que os canhões fazem mesmo é, pura e simplesmente, arrasar tudo ao seu alcance
outro modo de leitura, porventura um bocadinho menos directo mas ainda perfeitamente imediato, é o que resulta do particular uso e efeito dos canhões naquela I Guerra Mundial a que se refere a crónica, e basta lembrar o esforço de trincheiras que a caracterizou, precisamente contra a artilharia inimiga - mais tarde as linhas Maginot e Alpina tentaram constituir uma evolução defensiva, sem grande proveito...
um pouco menos directo e imediato é remeter para o que sucedeu à infantaria portuguesa, gaseada ou dizimada por canhões para que as nossas tropas não tinham preparação nem meios de combate
continuando, pode remeter-se para a pista interpretativa do verso respectivo do hino nacional, hoje cantado a plenos pulmões pela grande Helena Matos, com acompanhamento orquestral (? enfim, maneiras de dizer...) em todo o País
ainda assim, tudo captável num ápice, como meia palavra
O que teriam dito as 'línguas viperinas' nesta altura:
1917. During World War I cigarettes become the smoke of choice as pipes and cigars prove unmanageable at the front. Between 1910 and 1919 cigarette production increases by 633% from under 10 billion/year to nearly 70 billion/year, and cigarette smoking begins to become fixed among American men. The American Red Cross and the Young Men's Christian Association, previously opposed to the propagation of cigarettes, actively supply them to the troops overseas.
Voltando à trincheira, onde os canhões eram a temível arma operada pelos predadores inimigos, a prosaica visão de destruição era assanhadamente respondida pelos terríveis predadores endiabradamente agarrados às suas metralhadoras.
E não menos arrepiante (a minha especialidade) "The Germans introduced poison gas; it soon became used by both sides. Its effects were brutal, causing slow and painful death, and poison gas became one of the most-feared and best-remembered horrors of the war."
Se fossem só os canhões... http://www.youtube.com/watch?v=1N5SK1ysBvg&feature=related
A fechar (em virtude do horário), no hino os canhões foram um inocente remendo, pois os reais predadores seriam os Bretões!
PS - Registem os dicionários mais ou menos ilustrações acerca do acerto de dadas palavras/expressões, nunca ajudarão a tornar o preto menos preto, cinzento... quase branco. Talvez a jurisprudência possa ajudar a inocentar um criminoso, mas um predador não é símbolo de destruição ao nível duma guerra mundial. A esses canhões chame-se-lhes devastadores, demolidores, arrasadores...
em "A oeste nada de novo", Erich Maria Remarque oferece um episódio em que se combinam os cigarros e a artilharia - interessante para todo o entendedor mesmo além de qualquer palavra de qualquer dicionário ou mesmo de fugazes (mas necessárias, prazenteiras e, muitas vezes, proveitosas) consultas na internet
mas é forçoso concordar que não temos que abandonar as cores do arco íris lá porque vemos um dicionário em que só há preto...
já para não falar dos dicionários que deixam preto no branco o sentido de destruição de predador
Filosofia da Linguagem (a filosofia da imprecisão) Uma mulher de 80 anos entra na sala de convívio dos homens do lar de terceira idade. Ergue o punho no ar e anuncia: - Quem adivinhar o que tenho na mão pode fazer sexo comigo esta noite! - Um elefante! – grita um velhote ao fundo da sala. A mulher pensa durante alguns instantes e responde: - Resposta certa!
E tantas outras com graça, saber e arte! http://abuscapelasabedoria.blogspot.com/2010/09/analise-do-livro-platao-e-um.html