Terça-feira, 8 de Março de 2011

MALOTE DE COURO ENGRAXADO

 

Autor que não foi possível identificar

 

Desde o sonho, à ilusão, ao possível foram muitas as etapas. Mulher que amava comboios, mulher apaixonada, aparentemente tranquila, magma perto da superfície, a custo contido. Pelos cabelos negros e olhos imensos, pelo langor dos gestos diziam-na exótica. Suave. Estranha entre pares, a simplicidade, sem querer distante, sobressaía. Farta da diferença, do olhar de baixo para cima dos homens que a rodeavam e, langorosos, lhe endereçavam desejos, cansada da rotina aniquiladora, telefonou:

_ Marque o comboio que sabe. Sugira datas porque qualquer me serve. Não preciso de detalhes, salvo dos horários e voos. Desta, o resto fica por minha conta.

Meia hora passada, soube das minudências. Encafuou no malote de couro, herança do avô, viajante dos sete costados, o máximo/mínimo para a fuga. Dormir nua era vantagem no arrumo - banho aromatizado e nuvem de perfume serviam de camisa de cetim ou de seda ou musselina.

 

Hesitou em desvirtuar arranhões/registos na mala. Mas teve prazer no cheiro a graxa, na escova de dentes adaptada a espalhá-la, no tempo da secagem, no polimento com a camurça e a escova dos castanhos. Remirou-a. Luzente como jamais a vira quando o avô andarilho a usava. Feliz cada regresso nos olhos da avó. Ocupada com a casa e os filhos, entendia a necessidade do seu homem partir só em aventura longe - nos livros nascia a semente, nos mapas florescia.

 

Já o comboio era foguete nos trilhos, pela janela largava bagagem invisível, atafulhada de humores descoloridos até ali de chumbo no peso. Sentiu-lhe o olhar antes de visto. Aspirou cheiro a homem cuidado, vagamente madeira, vagamente sândalo. Sentiu o calor do roçar leve, olhou a figura.

 

Enquanto nos carris galgava viadutos e noite, ela deles sabia pelos brilhos que no camarote cintilavam breves e repetidos, pelo tremor do perfume de sempre - ouro líquido, pele segunda. No meio-sono desassossegado, o p’ra frente inquietava-a mesclado pelo homem que a perturbara. Ele, inquieto como ela, hesitara no bato-não-bato encostado à porta donde quase da mulher sentia o respirar e o voltear no que da cama fazia vezes. Fosse adivinhação ou partida sonâmbula, ela saiu. No corredor, levantou a janela, aspirou fundo o ar que também lhe desnorteava o cabelo, instantes eram passados do homem cuidado, vagamente madeira, vagamente sândalo, hesitante, entrar no compartimento portas adiante.

 

Acordou-a o aroma de especiarias que Istambul transpirava. Desde logo, soube que lhe pertencia. Vagueou, nas ruelas, permitiu-se o luxo do exotismo que brincava com ela e o imaginário ali recuado ao XV lisboeta. Galgou, em corrida, a distância até ao barco, máquina de registos instantâneos na mão. Barco ia, outro vinha. E ela captava. Na amurada, curiosa, viu as imagens últimas - enquadrado no convés que regressava, fitava-a o homem que no comboio a perturbara. Entendeu como sinal o desencontro. Tonta, sabia, pelo crédito dado à premonição contrária às andanças/surpresas dos futuros.   

 

Com a mala de couro do avô viajante na mão viu o comboio que se despedia. No cais de muitas esperas e partidas, sob a luz poente coada, transpirava no seu pescoço altivo a dádiva ao aroma a madeira, quase sândalo. Parada, deu-se cinco minutos. Nada, a não serem apitos, sons metálicos de ferro sobre aço ou oposto, o afago da solidão em canto do mundo (in)esperado.

 

Sem retrodecer, cidade/vontade em frente. Sentiu vestir-lhe a pele mistura nova: o seu ouro perfumado, o sândalo do homem que a abraçava. A madeira, essa, diluíra-se. 

 

Nota: conto, por desafio amigo, inspirado no vídeo a seguir.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 10:50
link | Veneno ou Açúcar? | favorito
18 comentários:
De Perseu a 8 de Março de 2011

Apenas uma nota.
Chanel nº5 uma fragancia que só mukheres de muita classe,charme e beleza o podem usar.
Sedução de uma viagem.
Encanto de uma,sempre o encanto,de uma mulher.
Crónica de passadeira encarnada.
De c a 8 de Março de 2011
Córnica que parece um conto ;-)

Quem não tem mais que fazer... mostra as suas habilidades e alguém aplaude (com música)

http://www.youtube.com/watch?v=Fej_e-awPB4

Hoje é dia da Mulher?

http://fotos.sapo.pt/orlando_horta/fotos/desfile-grupo-acesso-sapucai-rio/?uid=0kaPfTSS29Mwt71Q4GpV&aid=5
De Maria Brojo a 10 de Março de 2011
Perseu - odeio o perfume: doce em demasia. Prefiro o meu da Dior (veneno da meia-noite).
De -pirata-vermelho- a 10 de Março de 2011
E!...
pergunto eu,
a qu'é que você cheira, antes da meia noite?
De Maria Brojo a 10 de Março de 2011
Pirata- Vermelho - como laracha, juro, costumo dizer limitar as minhas fidelidades ao sapateiro, talhante, mecânico e merceeiro. Abro excepção aos perfumes e mesmo assim...

Apenas substituo o 'midnight' - dizem-no perfume da rosa negra - pelo relaxamento pós desporto que me proporciona o 'Art of Spa' da Helena Rubinstein. Na embalagem diz: 'relaxing power'. E eu, parva, acredito. Não me tenho dado mal, convenho.
De -pirata-vermelho- a 10 de Março de 2011
artfícios inúteis!


antes quero cheiro que me pegue pelo meio
De -pirata-vermelho- a 10 de Março de 2011
Eu declaro
e
dpois diga que me topam... diga!
De Cao do NILO a 8 de Março de 2011
Ainda se da dama a fragrancia
fosse Lancome Magnifique ou Carolina Herrera......do Bosforo ia ao fim do mundo (é um desabafo)::: em mim gosto do cheiro a LAVADO:

Vou dar musca para irritacao do primo do Eng.( ou será do Mariani?)

Heureux qui comme Ulysse par Georges Brassens


:
.
De Perseu a 8 de Março de 2011
Carissimo Nilo;

Gostos de perfumes femininos não são passiveis de contra argumentar,é tudo uma questão do ton de pele das portadoras.
Contiudo os por si citados são mágnificos.
O bom gosto não fica mal a um homem.
De c a 9 de Março de 2011
Então agora não é a da Coelha?

Saia nova crónica: Ai la viú - Ai lave you - Ai la vue -

http://www.youtube.com/watch?v=g7VLnv6LTV0&NR=1

http://www.youtube.com/watch?v=_ezyXj7lerA&NR=1

http://www.youtube.com/watch?v=ekxBJBEi8gQ&NR=1
De Maria Brojo a 10 de Março de 2011
Cão do Nilo - nenhum dos mencionados vai bem com a minha pele e o meu gosto (ver resposta ao Perseu).
O vídeo? Lembrança magnífica!
De -pirata-vermelho- a 8 de Março de 2011
O cinema ao serviço da publicidade.
Neste caso cinema bom e publicidade má (e ainda bem...)

O seu conto é giro, mas...
parabéns
De Maria Brojo a 10 de Março de 2011
Pirata-Vermelho - entendi e alterei. Obrigada.
De leonor a 9 de Março de 2011
Li primeiro o texto e só depois vi o clip da Chanel .
É impressionante como conseguiu transmitir toda sensualidade existente nos diversos sons do comboio e em Istambul . E também aquelas chamas nos corpos que se lêem e reconhecem sem recurso a palavras.

Nota: adorei a continuação da estória do afastamento daquele casal magoado. Obrigada.
De Maria Brojo a 10 de Março de 2011
Leonor - muito obrigada. É gosto sabê-la por aqui.
De Cao do Nilo a 9 de Março de 2011
Teresa. sandalo é madeira!
Qual era entao o "cheiro" da madeira?
Gosto da sua maneira de escrevinhar e do filme.
Pelo bom escrevinhar(seu) me irei mantendo por aqui.
Ah... soube entretanto que a Marylin Monroe usava umas gotitas de Chanel 5 como pijama... a magana.
mas a Teresa que nao é Monroe(tem outros atributos) e intuo usar perfumes outros. nao lhe ficaria mal escrever uns scriptezitos para os Vuitton Cartier ou quejandos do fashion pack.Your gain would be our loss but...that`s life.
Ia escrever mais umas tiradas parvas mas... ficam para dias outros.

















De Maria Brojo a 10 de Março de 2011
Cão do Nilo - embora o sândalo seja madeira, o aroma desta nos perfumes é bem diferente.
A sua sugestão não será desperdiçada em futuros textos.
De nilo a 10 de Março de 2011
Continuo na mesma!
Cheiro a(madeira de) eucalipto, pinheiro acácia etc- Cheiro a madeira?
Vou reler o Süsskind ;)

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