Estava sentado no canto mais recôndito do finado, julgo, café do Caleidoscópio. Ora de manhã ora de tarde, a mesa sobranceira, sabia que o cliente de sempre não a deixaria abandonada. Três horas após dia meado, deparei com o silêncio dele. Rabiscava, lia, erguia o olhar, observava (provável meditação sobre pensares cujo registo o dossiê atendia). Na década dos meus «inte», translada para Lisboa contava meia dúzia de anos, jamais conhecera escritor consagrado. Tão pouco sabia o nome da figura abrigada na frescura do espaço. Assegurada a parvoíce de quem há pouco adquirira o estatuto de adulta, as ofertas culturais de Lisboa atordoavam-me – na Coimbra que me viu crescer, qualquer novidade cultural garantia de casa cheia. A partir dos doze anos, os pais alargaram o filtro – permitam-me acompanhá-los. «Papei» quase tudo.
Na Lisboa que ainda não aprendera a amar, o Caleidoscópio funcionava como substituto do café onde, em Coimbra, estudantes mesclavam correntes dos saberes. Num dos números do Jornal das Letras constava declaração de Augusto Abelaira: “Um romance é não somente o que lá pôs o escritor mas é também o que lá puseram os leitores” (…) “esse leitor imaginário é um leitor muito especial: é um leitor que sente a falta de um certo livro ainda por escrever. E o escritor procura corresponder a esse desejo, oferecendo-lhe o desejado livro”. Mais lera - "Sem o manuscrito do Bosque Harmonioso - entrou num café-, mas trazendo comigo este caderno, onde vou rabiscando as minhas conclusões sobre Cristóvão Borralho, releio as páginas anteriores e hesito novamente. Se a versão com sabor quinhentista se torna ridícula, o português correntio não roubará ao texto o clima próprio, aproximando-o excessivamente de nós? Não o despersonalizará? Decido então, por agora, mudar de rumo e perguntar: que espécie de homem foi Cristóvão Borralho, o escritor quinhentista de quem já dei a pequena amostra algo brejeira e portanto pouco significativa da originalidade revolucionária das suas intuições?" Não esqueci o lido, fui-me a uma livraria e satisfiz a curiosidade.
Ao comentar com amigo/colega amante das letras e das mulheres, não necessariamente por esta ordem como soe o dito, que na leitura do “Bosque Harmonioso” me intrigara como o inventado narrador Arnaldo Cunha tão bem simulara encontrar e traduzir manuscrito quinhentista, “O Bosque Harmonioso” de Cristóvão Borralho, obtive partilha com tanto de inesperada como de fascinante. Descrevo-a: _ “Leste isso? Nem me fales de tal livro! Até há pouco, o Abelaira e eu fomos inimigos de estimação.” Com os botões que restavam apertados no meu vestido congeminei e disse: _ Como assim? Por assunto de saias, só pode! Olhou-me entre o perplexo e divertido, conhecendo bem o falatório que o envolvia. Não desmetiu. Acrescentou: _ “Não imaginas quem é na realidade a enigmática Irene, a personagem que tem um caso com o autor. É uma amiga comum que ele conheceu meses antes de mim.” De novo, tive como ouvintes silenciosos os meus botões: _ Sim, sim!, amiga arco-íris. Respondi: _ Não fazia ideia que conhecias tão bem o Abelaira. Ele: _ “Por dentro e por fora. Sou mais do que uma vez mencionado no “Bosque Harmonioso” como o outro que lhe roubava a exclusividade da Irene. Sentia inimizade pelo Abelaira e fui retribuído. Já passou! Agora, vejo que é afável e damo-nos bem.”
Mantive com o Augusto inúmeras conversas. Todas no Caleidoscópio. Jamais toquei no assunto Irene. Ficámos amigos e a ele devo preservar no amor à escrita. Memória íntima de um Homem que procurarei sempre honrar.
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros