Julianne Moore a partir de uma obra de Bouguereau Eddie Redmayne by Marius
"Está aí a noite dos Oscars. Confesso que é das noites para onde durmo melhor. Dos filmes de 2014, já falei. Só que, alguns dos filmes candidatos vi-os este ano. Portanto, ou falo agora, ou me calo para sempre. Não é conversa para almas sensíveis. Saiu-me, como vão ver, um minueto allegro molto, a começar em vénias e outras mesuras e a acabar em sodomia. Olhem, aguentem-se.
Ah, pois é, ainda estou à espera que 2015 me lave os olhos. Mas tenho de agradecer aos actores do filme de Alejandro G. Iñarritu. No seu Birdman, Michael Keaton , Edward Norton e Emma Stone são soberbos. É pena que haja “estilo” a mais na realização (não era preciso tanto Iñarritu), mas isso já é aquela conversa da treta de querer ser eu a fazer o filme que outro tipo fez. E ia já falar de Whiplash e do American Sniper e da série True Detective. Refreiem-se os cavalos, que Roma e Pavia não se fizeram num dia. Já falo (e só por esta primeira pessoa do indicativo se vê como a língua portuguesa é uma língua daquilo que estão a pensar, isto é e amenizando, traiçoeira).
Em Janeiro, fui ver o Foxcatcher. A realização é de um Bennett Miller, com quem não fiquei com vontade nem sequer de tomar o pequeno almoço. É um filme empertigado, de um ricaço e muitos pobres, de wrestling, dominação e submissão, com um tiro no bucho a fechar. Os actores não têm culpa nenhuma: Channing Tatum e Mark Ruffalo, tudo ponderado, estão muito bem. Steve Carell, que é no filme um milionário, para os meus pobres olhos está agarrado e vergado ao que a realização e argumento acham que é uma ideia e a mim me parece que é um espartilho. Estou de certeza enganado, mas quem dá o que tem, como eu vos estou a dar, a mais não é obrigado.
Também vi Adieu au Langage (Adeus à Linguagem), de Jean-Luc Godard. Vi o filme em 3D, mas os meus olhos já não são o que eram e a ideia de 3D de Godard, de uma radicalidade desconstrutivista, pôs o meu olho direito a olhar para uma câmara e o meu olho esquerdo a olhar para outra. Até gosto, como já várias vezes confessei, de fechar os olhos nos filmes, mas a ideia não é ficarem a doer-me. Se bem percebi a pulsão estética do filme — e Godard é mesmo um dos grandes criadores do cinema da segunda metade do século XX, digam lá o que queiram dizer — gostava de lembrar que um pequenino filme seu, uma encomenda da France Telecom a que chamou “Puissance de la Parole”, há uns 20 e picos anos, já fazia do cinema pintura, já convertia toda a linguagem em puro aforismo, numa deriva nietzschiana a roçar-se pela voz e pela linguagem de Deus. Ainda assim, ninguém ou quase ninguém filme o corpo de uma mulher, a sua funda e negra origem do mundo, como Godard o filma. Também aqui em “Adeus à Linguagem”.
Foi em Janeiro que vi The Imitation Game (Jogo de Imitação). O filme tem um realizador, mas tanto se dá ou tanto faz. Sei que vou causar o maior desgosto ao Pedro Norton, mas “O Jogo de Imitação” é um daqueles pastelões ingleses que se deslumbra com a história que quer contar e se esquece do que eu me habituei a chamar cinema. Este “Jogo de Imitação” foi a sala de cinema, a cores, e já não digo em 35 mm, que isso agora não interessa nada, mas podia ser uma série da BBC, um documentário, ou podia ser só um gajo interessante com uma voz bonita a contar tudo a uma miúda que gosta de o ouvir, mas que só pensa “este gajo está tão encantado a ouvir-se que vai ficar a falar umas duas horas e nunca mais me salta para cima”. Faço notar que estou a falar de um filme em que entra Keira Knightley — ora a boca entreaberta de Keira é, atendendo à minha idade e meios, a única coisa que hoje me tira sexualmente do sério. No filme, também entra, azar dele, Benedict Cumbernatch: faz boquinhas intestinais.
Veio, depois, o mês de Fevereiro. Vi Whiplash, (Whiplash, Nos Limites). Belo filme. É uma luta entre dois actores. Os actores, como se sabe, têm de ser alguma coisa. Em “Whiplash” há um jovem baterista de jazz em processo de aprendizagem e há um professor razoavelmente estalinista ou, para que toda a gente me compreenda, nazi. São muito bem filmados por Damien Chazelle, que também assina o argumento, e é pena por que devia ter pedido ajuda. Para mim, “Whiplash podia já ser um dos filmes de 2015, se a namorada e o pai do baterista tivessem só mais um bocadinho de densidade, e se a personalidade dos protagonistas ganhasse algumas nuances.
Em romaria amorosa, fui à Cinemateca ver um documentário. Chama-se João Bénard da Costa– Outros Amarão as Coisas que eu Amei. É um doc de Manuel Mozos, que conheço muito mal, mas por quem tenho uma irredutível simpatia. Por João Bénard tenho amor. Escuso, por isso, de vos dizer — ou melhor, digo mesmo — que vi com estremecida emoção o João a falar, a falar dele, a falar de filmes, aos beijos à Gene Tirney, à Joan Crawford e até à malvada Mercades McCambridge (e é preciso que se diga que essa mulher que nem parece bonita no “Johnny Guitar”, exsuda uma valente e rija sexualidade de alto — e oh se está alto — lá com ele). É o melhor João, o melhor escritor de e sobre cinema, a sua silhueta mítica, que o Manuel Mozos nos dá a ver.
Vi e talvez fosse melhor não ter visto, The Canyons. Realizou-o Paul Schrader, o mesmo Schrader que realizou “American Gigolo”, o mesmo Schrader, obsessivo, psicótico, calvinista que escreveu “Taxi Driver”. Pois é, já não é o mesmo. Ou pelo menos não foi o mesmo. O argumento é de Brest Easton Ellis, um escritor com que andámos ao colo ali pelos anos 80. Juntaram-se, se assim posso dizer, dois moralistas. Ora, dois moralistas juntos não fazem faísca. O católico Scorsese e o protestante Schrader, em “Taxi Driver”, faziam faísca. Aqui, neste “The Canyons”, por onde tantas vezes passei e de que tanto esperava, nem há blasfémia, nem há tesão. É só a circunstancial e muito económica puta da vida. Adiante.
Dei comigo e estava na sala do El Corte Inglès a ver o American Sniper. É, com o “Whiplash”, o melhor filme de ficção que vi este ano. Não é perfeito, nem é Ford, como já para aí ouvi dizer (digam merdas dessas e depois admirem-se que o velho irlandês se levante da cova funda e vos venha abanar pelos colarinhos). “American Sniper” é um filme colado ao mais não-empático dos heróis. Clint Eastwood, realizador de meia-dúzia de obras-primas (“Mystic River”, “A Perfect World”, “Absolut Power”, “Grand Torino”, etc…), escolheu muito bem ao escolher o básico Bradley Cooper, que é in-charmoso todos os dias. Afinou depois a mira para uma ideia precisa, a de um homem com um dom. Lembrei-me do De Niro do “Deer Hunter” a elogiar a sublime limpeza do “one shot” com que abate veados. Eastwood transfere para o Iraque as montanhas da Pensilvânia de Michael Cimino e caem veados que nem tordos, se assim se pode, impiedosamente, dizer. É quase tudo irrepreensível, menos o equivalente sniper islâmico que é uma coisinha tipificada e anedótica, menos algumas montagens cruzadas, de contraste forçado, a meter dedos pelos olhos adentro, como sói dizer-se. Nos tempos que correm, belo filme, quand même.
Também fui ver The Theory of Everything (A Teoria de Tudo). Estava a ver e “ói, onde é que eu já vi isto?” Pois é, vi isto no “Jogo de Imitação”. Os mesmos cenários, a mesma ideia narrativa, tudo ao serviço da “história”, da putéfia da mensagem, dos temas sérios com’ ó caneco. Cinema, viste-o, não viste? Tudo como se o dignificantíssimo drama, vida e obra de Stephen Hawkings estivesse a passar no canal História e a reconstituição viesse servida com aquela elegância de chá, torradas, e um bocadinho de emproada paneleirice de Oxford do “Brideshead Revisited”. Nem digo o nome do realizador que é para a mãe dele não se obrigar a vir aqui despejar comentários impróprios.
Este fim de semana, feliz no futebol, no amor e no dinheiro, saíram-me mais duas rifas no cinema. Vi um tal Wild Tales (Relatos Selvagens), uma co-produção hispânico-argentina, de fábrica almodóvariana. Percebe-se a ideia — mais ou menos indignada — tão adequada a estes tempos em que se procura encontrar num palheiro a treta da afiada agulha que se perdeu na cozinha. É uma cambada de short stories, realizadas pelo argentino Damián Szifron , todas elas engravatando de humor negro situações do mal estar contemporâneo, da auto-estima à burocracia, passando pela intrincada afectividade que nos leva a casar e a divorciar. Tanta mensagem, tanta denúncia, tanta bufaria.
Hoje mesmo, fui ver Inherent Vice (Vício Intrínseco). É um filme de Paul Thomas Anderson. Fragmentado, construído em mosaico, creio que como no livro que não li de de Thomas Pynchon em que se baseia. Ou um tipo se deixa levar e se ri (ri algumas vezes, sobretudo de metade do filme para a frente quando percebi que se não me risse, o bilhete e o tempo tinham sido um mau investimento) ou um tipo não se deixa levar. A bem dizer, não me deixei levar. Falando de Joaquin Phoenix, o protagonista, diria que muito provavelmente não poderia estar mais cabotino. Ainda assim, lá para o fim daquele “Vício” todo, vem-lhe cair no colo, literalmente, a Katherine Waterston, lindamente nuínha, de maminhas perfeitas, de pombinha, em espesso intumescimento (perdoem-me a tentativa de descrição gráfica, mas faço-o com propósitos críticos a roçar o científico), acabando tudo em moderada sodomia — a meu ver mais moderada do que parece, mas é claro que cada um sente as coisas à sua maneira.
Às vezes é preciso deixar o cinema para se encontrar o cinema. Já aqui tinha gabado True Detective. É televisão, dir-me-ão, não conta. Conta, pois. Os oito episódios de “True Detective”, de que é autor Nic Pizzolatto, são, até agora, o melhor filme que vi em 2015. Vi-os todos em três dias seguidos„ como quando ia à Gulbenkian, às programações do João Bénard, ver um filme à 6ª à noite, três ao sábado, das 15 à meia-noite, e dois fechar o domingo. “True Detective” tem crime, tem pedofilia, tem sexo, tem rituais satânicos, tem política, mas tem isso tudo metido numa fabulosa construção narrativa, com mise-en-scène e montagem, efeitos sonoros e música. E tem actores. Matthey McConaughey e Woody Harrelson não servem o argumento, reescrevem-no. Nos olhares, na tensão dos corpos, no movimento, seja o mais naturalista, seja o mais codificado e teatral dos movimentos.
Daqui a mais um mês, temos mais conversa cinéfila."
Nota – Texto escrito por Manuel S. Fonseca no Escrever é Triste.
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