Abel Manta, pintor nascido em Gouveia em 12-10-1988 Abel Manta - Fundação Calouste Gulbenkian
“Mas quem somos nós senão os outros? Um homem é todas as coisas que ele viu e todas as pessoas que passaram por ele, nesta vida.” (Teixeira de Pascoaes)
O património de alcunhas nas Aldeias, freguesia do concelho de Gouveia onde ainda tenho a casa do Prado e raízes fundas, está ferido por gentes desmemoriadas cuja tradição oral não importa. Dela, relembro idos e o desuso em que caiu linguajar que me encantava.
Nome primeiro acompanhado por outro associado ao lugar de morada ou afazer é passado. Hoje, imperam apelidos como o notário registou. Mas são lembrados alguns, embora os utentes, na maioria, já tenham a alma no Além. Curioso era não se apoquentarem os alcunhados. A Emília ‘da Carvalha’, habitava junto ao carvalho frondoso no adro da Igreja. A ‘tia Costureira’ ou ‘Emília do Canto’ associava lugar de morada à profissão exercida com pundonor. O ‘José da Volta’ tinha casa à ‘curva do Prado’ e, logo abaixo da escadaria que ao mesmo lugar ascendia, morava o ‘Senhor Barbas’. O ‘Joaquim e a Emília do Largo’ viviam no Largo da Igreja, a ‘Céu Forneira’, no centro do «povo»*, cozia pão no forno comunitário.
Do casal ‘Joaquim e Alice das Risadas’ lembro a curiosidade e o sorriso melífluo da mulher, pais extremosos de menina que casaria cedo, talvez com dezasseis anos. Tornou-se mulher bonita que recordo elegante na postura ao atravessar a cidade. A ‘Senhora Céu Americana’ fora emigrada nos Estados Unidos da América. Voltara com fortuna, enfeites e ouros no pescoço, também ao dependuro em todas as extremidades, salvo pés. Óculos excêntricos para a moda local, lábios pintados com carmim espesso, cabelo enrolado em «banana» ripada. Simpática e generosa.
À ‘Fernanda do Sargento’, filha de militar da GNR, solteirona, caracterizava-a o silêncio, a afabilidade, o ar maltrapilho conquanto tivesse posses de sobra. Combinar roupa extravagante era a sua especialidade. Irreverente, pouco lhe importava o que sobre ela era falado nos dizeres aldeões. Persistia nas idas e vindas diárias, a pé, para a cidade de Gouveia, àquele tempo, vila, que os mil e poucos metros facilitavam. Discreta, não era mulher para ‘levar e trazer’, o mesmo é coscuvilhar. Parece que por ter sido o pai republicano aguerrido, não paravam padre, andores, anjinhos e banda nas procissões junto à casa de morada.
A ‘Emília Romeira’, mulher simples no pensar, amiga dum copito mas sem exagero, trabalhadeira nos campos como poucas, tinha um filho: o ‘Menã’. Dele recordo (…)
Nota: há instantes, texto publicado aqui.
CAFÉ DA MANHÃ
Abel Manta, Fundação Calouste Gulbenkian
Do quase Sul, aceder à Estrela. Saindo da A1 para a IP3, basta percorrer vinte quilómetros para que o «lago» da Barragem da Aguieira altere o cenário da Beira Litoral, pré-anunciando outro – o da Beira Alta. Arvoredo misto progride até capitular perante o pinheiro bravo e alguns eucaliptos. Após via rápida até Nelas, estrada curvilínea, trânsito raro, segura a velocidade moderada. Mas bela, cheirosa, com sombras que entrecortam a «soalheirada» dos últimos de Julho. Num troço, o desgosto de incêndio em fase de rescaldo que bombeiros vigiam. E se era magnífico aquele pedaço! Daqui a quantas décadas, pressupondo optimismo, a área ardida regressará ao viço anterior? Novo pinhal talvez nunca se o solo foi exaurido de alimento até ao tutano.
Em Nelas, paragem garantida: magnífica cafetaria estende esplanada sob tílias e plátanos; para refeição de substância “Os Antónios” sito nas antigas adegas dum solar, outrora, propriedade dos Jesuítas. Gastronomia tradicional da região, gama de vinhos excelentes. No Inverno, lareira acesa convida a esticar a presença. Serviço atento, custo sensato. Tílias e mais tílias bordejam empedrado e alcatrão onde é fácil estacionar. Porquê interromper o trabalho do motor em Nelas? _ Dali em diante, muda o horizonte, surgirá a imponência da Estrela e das suas faldas que alojam as cidades de Seia e Gouveia. A primeira, industrial com magnólias a enfeitá-la; a segunda, tranquila e bela onde o património, pela riqueza, foi preservado e as hortenses floridas espreitam em qualquer recanto. Duma ou doutra, quinze quilómetros de distância entre elas, acesso directo e curto à montanha. O de Gouveia promete e cumpre a revelação do “Cabeço do Velho”, dos elevados penedos esguios das “Freiras” alinhados em procissão, do “Mondeguinho”, das “Penhas Douradas”, do “Vale do Rossim”. Para satisfazer a arte de bem comer, em Seia, o “Camelo” e o “Solar do Pão”; Gouveia oferece (re)conhecidos lugares e a «boda» no Albertino.
Corra estio excessivo, a Estrela e seus próximos arredores garantem frescura nas manhãs e no entardecer. Por tudo, destino sem estação pela abundância de parques e de aldeias históricas, romarias, praias fluviais, outras imitando as marítimas, a neve e os desportos de Inverno.
CAFÉ DA MANHÃ
Abel Manta - Fundação Calouste Gulbenkian
Num encontro ocasional:
_ Aturas-me para detalhares as lutas dos operários de lanifícios daqui nos anos sessenta e setenta?
_ Quando quiseres; porém, devias conhecer a Maria do Céu, essa, sim protagonista e conhecedora mais profunda.
Quem me respondeu foi a Emília Manta, amiga desde a adolescência.
Como soe afirmar, palavras não eram voadas, surge Maria do Céu Ferreira de Jesus. Foi impressiva a presença – mulher elegante, ponderada, olhos negros reluzindo. Sendo informada de quem eu era e ao que vinha, acordou num encontro a três, pelas cinco da tarde seguinte em casa da Milita, porta à frente da que flanqueia entrada para edifício de granito onde nasceu o tio-avô, o pintor Abel Manta, ícone das artes plásticas nacionais a que Gouveia não regateou tributos como seu filho genial.
À hora e dia aprazados, subo os degraus de madeira cheirosa e brilhante pela cera. Logo após, entra a Maria do Céu que tanto me intrigara e, selvaticamente, admirei. Na saleta fresca, decorreu a conversa e, pela ausência de gravador, digitado o ouvido.
“Nasci em Gouveia. Ainda pequena, fui para o “Patronato”, instituição dirigida pela D. Zulmira Bellino, mulher do dono da fábrica de lanifícios “Belina”. Na casa repartida em secções – primeira infância, segunda e jovens adolescentes que não frequentavam a escolaridade/luxo pelos débeis proventos -, eram ensinadas «prendas» femininas da época: limpar, lavar roupa e chão, pô-lo lustroso, bordados, rendas, tricô e outras artes que das meninas fizessem esposas perfeitas e mulheres submissas. Muitas operárias deixavam ali as filhas enquanto labutavam, em pé, oito horas diante das máquinas fabris.
Thomas Deitrich
Frequentei o “Patronato” até aos dezasseis anos. Também a JOC – Juventude Operária Católica. A origem social de cada membro determinava estar e percurso, e influiu no meu idear social. Em 1963, por vontade minha, candidatei-me a operária da Sociedade Industrial/Amarantes e fui admitida na tecelagem predominantemente masculina. Ambiente de pessoas conscientes da opressão, repressão e exploração que as vitimava. Solidárias, todavia. Dispostas a emperrar, subtilmente, o sistema, existindo colegas injustiçados. Prova houve com o “trabalho por objetivos”: eram premiados aqueles que muito produziam. Falsa questão, constatámos; trabalhar «corte» liso é rápido, um de xadrez demorado. Horas de labor idênticas, produtividade diferente. Sabíamos que na distribuição dos «cortes» eram jogadas simpatias hierárquicas. Como reagir? _ Simples: somados os prémios e divididos de igual maneira por todos. Entendia, vividamente, num lado estar o capital, no outro a força laboral.
Escasseando trabalho, o operário laborava seis dias e ganhava quatro. Na “Sociedade Industrial”, era majorada a repressão se comparada com outras unidades fabris. A adesão à EFTA e a guerra colonial aumentaram vertiginosamente as encomendas, mormente pelo fabrico de têxteis destinados ao fardamento das Forças Armadas. Entre sessenta e sete e sessenta e oito, os patrões chamaram trabalhadores da Covilhã de molde, diziam, a satisfazer a produção. Aumentados conflitos, prática comum trabalhar sob chicote, ameaças e castigos – sendo crianças, duplicados pela ausência de «féria» devida ao descanso compulsivo, pelos pais que sentiam no bolso a falta de ajuda para alimentar as bocas da família.”
Maria do Céu prosseguiu o relato. “O Estatuto do Trabalho Nacional em 1933 introduziu mudanças pesadas – os sindicatos deixaram de ser por classe e passaram a corporativos. Em Gouveia, surgiriam em 1939. Direções fantoches nomeadas pelo governo. Através de esbirros sindicais, todo o ocorrido entre operários era comunicado ao patrão.
Novidade se interpôs a meio dos sessenta: abertura do turno da noite na Escola Industrial que sublinhou a atávica rivalidade entre Seia e Gouveia por, então, ambas as vilas concorrentes em importância desejarem também neste particular a primazia. Na última, o domínio económico e político repartia-se entre Bellinos e Frades (estes, donos das Amarantes). Em degrau seguinte de importância, a família Leitão, também distinta por incentivar a formação dos operários. Facto é os patrões dos lanifícios em Gouveia selecionarem os funcionários candidatos ao ensino noturno: aos preferidos - ‘bem comportados’ (?) - pagavam custas do bilhete de identidade e propinas. Fui preterida. Não desisti: paguei o necessário do meu bolso e, curiosidade, fui a única que terminou o curso com êxito. A entidade patronal não facilitava a vida dos trabalhadores/estudantes - horário por turnos igual ao de sempre. Valeu-me a mãe que trabalhava na mesma fábrica e fazia as noites enquanto eu libertava tempo para as aulas ao trabalhar apenas de dia.
Ainda na década de sessenta, a maciça emigração essencialmente para França. Os homens partiam, as mulheres ficavam, algumas até o marido conseguir lá fora sustento e abrigo. Aumentou, em consequência, a mão-de-obra feminina e operária, nomeadamente na secção de ‘estambre’ tradicionalmente masculina; razão para serem diminuídos os salários.”
A Milita recordou que a vida na fábrica lhe lembrava o filme “O Grande Ditador”. Risível e dramático. Havia saído do Patronato para a “Formação Feminina” na Escola Industrial com equivalência ao quinto ano do liceu. (...)
Nota: texto publicado na íntegra aqui.
CAFÉ DA MANHÃ
Abel Manta
Quem não for com missas é favor passar adiante. Fiquem as palavras para os resistentes. O sétimo dia em que Deus terá descansado ficou oficializado ao domingo. Nas cidades grandes, é pretexto para fugas, o nada-fazer, limpar os metros quadrados que as paredes domésticas limitam, “passeios-dos-tristes”, para namorar ou para discussões conjugais. O freguês pede, o domingo dá.
Nos meios pequenos, os itens continuam semelhantes. Todavia, há acrescentos de monta. A missa congrega crentes e não-crentes. À volta dela, gira a manhã do dia. A partir das oito, batem portões e saem os madrugadores. Cuidados no trajar, os casais de idade são os primeiros a cumprir o ritual. Deixam para depois a feitura do almoço. Havendo família a juntar, mais tempo sobra para os paparicos que, amorosamente, reservam aos filhos e netos. Quem entende que o domingo também existe para remanso nos lençóis lavados, escolhe outra missa. Duas horas mais tarde, batem outros portões.
O centro urbano/rural acumula homens nas esquinas sombrias à beira da Igreja Matriz. Há «entra-e-sai» no café fronteiro. Na esplanada, servida também por tílias, ocupam lugares costumados os clientes sem era e da terra. Novatos ou passantes ficam com as sobras. Ponto de observação privilegiado, enche o olhar de quem está. Feitos os cumprimentos e o escrutínio, chegando a hora aprazada que o sino não lembra, continuam sentados turistas, descrentes e comodistas. Quem preza observar os mandamentos católicos entra na igreja. Muitas mulheres, poucos homens, cabelos brancos, coro afinado e treinado na função, homilia morna - aprendi que alegria espalhafatosa não faz parte das normas do reino de Deus. Acabada a função, todos dizem ámen e eu com eles. À saída, nova rodada de beijinhos e apertos de mão. Sabem como as amêndoas na Páscoa - na época, são delícia, durando ano inteiro, talvez perdessem o gosto especial.
Naqueles lugares, a hora da missa dominical acaba por constituir celebração ecuménica - reúne ateus, católicos de batizados, casamentos e funerais, católicos de todos os dias, coscuvilheiros e fãs da exibição. Mais abrangente, não há.
CAFÉ DA MANHÃ
Abel Manta Clementina Manta, mulher de Abel Manta
Estando em curso preparativos para romagem a lugar nas faldas da Estrela, preciso é dicionário que desambigue com os locais discursos.
O falar da Beira Alta tem quês e porquês. Destes, especialistas sabem. Os quês são conhecidos daqueles que por lá vivem ou viveram ou se informaram. Algumas expressões populares deleitam pela expressividade ou humor, ainda que, nalguns casos, jocosas ou ofensivas. É de citar pêlo na venta ao querer exprimir mau génio ou frontalidade invulgar de quem perante desaforo não fechava a sanfona (boca). Pêlo na barba tem o sentido de mulher peluda no queixo. Aliás, barba é, na região, também sinónimo de queixo.
Gorgomilo, bofes, bucho significam, respetivamente, garganta, pulmões dos humanos ou do porco, estômago ou enchido feito de partes menores do bicho e enfiado na bexiga ou no estômago do mesmo. As mulheres encarregam-se do pitéu após a matança; atam e põem-no ao fumeiro para ser cozinhado ou consumido em fatias no Domingo Gordo – domingo de Entrudo, o último antes da Quaresma.
No cortelho, lugar reservado ao porco, a pia feita de pedra servia para conter o alimento que faria crescer o animal até Janeiro, mês em que ia desta para vida outra nas salgadeiras dos arcazes (arcas em castanho velho) arrecadados na loja (parte inferior da casa situada ao nível da rua). Pelo balcão subiam os moradores até ao espaço reservado para habitarem.
Almoço, fatia, jantar, ceia design(av)am refeições equivalentes e pela mesma ordem a pequeno-almoço, comida levada pelos donos da terra aos trabalhadores agrícolas entre as onze e meia e o meio-dia, almoço e jantar. Madrugar e dormir cedo eram hábitos indispensáveis a quem iniciava cedo a jorna. A ausência de televisão, de leituras, o frio entrado pelas frinchas dos telhados e das paredes em granito contribuíam para ir à deita mal a noite era descida. Filhos foram engendrados por falta de assunto ou pela quentura das cobertas (cobertores) que enganavam frio de arreganhar (arrepiar). Uns medraram (cresceram), outros morreram justificando a elevada taxa de mortalidade infantil antes e durante o Estado Novo. O ripanço (descanso) acontecia somente ao domingo quando ainda não era sonhada a semana-inglesa.
As matas e os milhos (milheirais) proporcionavam fugidios encontros românticos terminados em sexo. Rondada a futura amásia (amante) com rapapés (lisonjas) pelo candidato que lhe desejava o corpo, tudo acontecia num rufo (momento). Dando o povo conta, o passarinhar (andarilhar) dos amantes era vigiado por olhos curiosos, dizia o par amancebado e jamais esquecia o sucedido ainda que terminasse em casamento o romance. Galgas (mentiras) e nisgas (pedaços de nadas) de vaidade depressa alimentavam falatório e eram pretexto pra mandar pró catano (diabo) quem «argolava» comportamentos. Já bonda (chega)!, diziam. Também as malinas (doenças) de pessoas ou de videiras como a filoxera ou de pinheiros ou das batatas ou de outros produtos da terra que ajudavam à sobrevivência eram tema de conversa.
Das ovelhas, o leite para o requeijão e queijo serranos, o leite basto (leite coalhado com flor do cardo), os chibos (crias das ovelhas) eram petiscos, as mais das vezes oferecidos como paga de favores a famílias, médicos e profissionais dos serviços que as gentes auxiliassem. Lambarices (guloseimas) para lambareiros (glutões) que àqueles presentes chamavam ‘um figo'.
Enxaugar era e é perversão de enxaguar, rastolho tanto podia significar variedade de pêra como assuada (confusão, barulheira). Com nanja (nunca) enfático, perguntas eram caladas.
Mais haveria para referir se a tal chegasse o saber. Mas não chega. Já bonda!
CAFÉ DA MANHÃ
Estrela Faria, Abel Manta
Inverteram-se afectos - Lisboa de amor passou a amante, a Beira Alta de amor elevada a paixão. Complementam-se por amante e paixão serem formas lindas de expressar impulsos de ânimo. Não há paixão sem par amante, não há amor vero que dispense momentos de paixão. E distinguir entre sentires fortes que enrolam corpo e alma em rama fina de algodão é difícil pelas fronteiras próximas. Deixá-las entrecruzarem-se, oscilar entre uma e outra, alicia amanhãs. Não que a volatilidade dos afectos seja inferida, mas sim que de tão sérios e imprescindíveis simplesmente licenciam permutas de intensidade, mantendo, intocável, a fidelidade.
Nesta Lisboa, apetece descobrir mais e mais segredos que aumentem o pecúlio grato. Cidade mulher porque airosa, que joga ao ‘toque e foge’, enamora com recato para depois se abrir, despudorada, a quem dela e com verdade deseja fruir. E entrega-se e revela as colinas firmes, desce para o rio meneando ancas e nos requebros das pernas como se ainda soassem em fundo de música pregões das varinas. Deixá-la para um sempre é ingratidão à sua rara beleza nesta Europa vaidosa sem ter, todavia, onde cair morta. Porque quem ao belo se habitua tende a desvalorizá-lo, é preciso afastamento que cresça saudades e o reencontro por semanas ou meses torne em feitiço novo.
A Beira Alta é desafio que alicia urbana dos ‘sete costados’. Volver aos cheiros das urzes, dos pinheiros, da terra cavada, aos saltos dos ribeiros que o degelo engrossa, à proximidade da história lusitana em cada penedia, aldeia ou pelourinho, ao dia que pelo vagar possui mais do que duas dúzias de horas, seduz quem também por lá formou a matriz individual. Com os anos chegam desejos de paz mansa no exterior que permita às emoções a vivacidade de sempre, conquanto não interrompidas pelo correr sem fôlego nos dias.
Talvez em Lisboa falte o ‘bom dia’ do vizinho, talvez em Lisboa sobre cimento e torres onde gentes anónimas pernoitam após regresso extenuado a casa, talvez a oferta cultural seja tanta que entristece aquele que nem para o seleccionado consegue tempo, talvez em Lisboa os ciclos da Terra sejam menos pronunciados, talvez cada um esqueça demais quem é, talvez cada um lembre demais quem não foi. Talvez.
CAFÉ DA MANHÃ
Abel Manta
Do quase Sul, aceder à Estrela. Saindo da A1 para a IP3, bastam vinte quilómetros para que o «lago» da Barragem da Aguieira altere o cenário da Beira Litoral, pré-anunciando outro – o da Beira Alta. Arvoredo misto progride até capitular perante o pinheiro bravo e alguns eucaliptos. Após via rápida até Nelas, estrada curvilínea, trânsito raro, segura a velocidade moderada. Mas bela, cheirosa, com sombras que entrecortam a tarde soalheira do último de Julho. Num troço, o desgosto de incêndio em fase de rescaldo que bombeiros vigiam. E se era magnífico aquele pedaço! Daqui a quantas décadas, pressupondo optimismo, a área ardida regressará ao viço anterior? Novo pinhal talvez nunca se o solo foi exaurido de alimento até ao tutano.
Em Nelas, paragem garantida: magnífica cafetaria estende esplanada sob tílias e plátanos; para refeição de substância “Os Antónios” sito nas antigas adegas dum solar, outrora, propriedade dos Jesuítas. Gastronomia tradicional da região, gama de vinhos excelentes. No Inverno, lareira acesa convida a esticar a presença. Serviço atento, custo sensato. Tílias e mais tílias bordejam empedrado e alcatrão onde é fácil estacionar. Porquê interromper o trabalho do motor em Nelas? _ Dali em diante, muda o horizonte, surgirá a imponência da Estrela e das suas faldas que alojam as cidades de Seia e Gouveia. A primeira, industrial com magnólias a enfeitá-la; a segunda, tranquila e bela onde o património, pela riqueza, foi preservado e as hortenses floridas espreitam em qualquer recanto. Duma ou doutra, quinze quilómetros de distância entre elas, acesso directo e curto à montanha. O de Gouveia promete e cumpre a revelação do “Cabeço do Velho”, dos elevados penedos esguios das “Freiras” alinhados em procissão, do “Mondeguinho”, das “Penhas Douradas”, do “Vale do Rossim”. Para satisfazer a arte de bem comer, em Seia, o “Camelo” e o “Solar do Pão”; Gouveia oferece o (re)conhecido “Júlio” e a «boda» no Albertino.
Corra estio excessivo, a Estrela e seus próximos arredores garantem frescura nas manhãs e no entardecer. Por tudo, destino sem estação pela abundância de parques e de aldeias históricas, romarias, praias fluviais, outras imitando as marítimas, a neve e os desportos de Inverno.
CAFÉ DA MANHÃ
A rota de amor começara quase trezentos quilómetros antes. Companhia de viagem: música significante e deslumbre pelo novo acrescentado por via do langor exuberante da Primavera. Deslizando linhas do céu conhecidas, foi tempo de alegria. A Teresa C. amou o percurso mil vezes repetido com a Aguieira nas margens da IP3 - manto de água, espelho de povoados, ilhotas dispersas, barcos ancorados. Na chegada, o perto irrompeu majestoso pela simplicidade vetusta, pelo histórico acumulado. Encimando muitas, a casa aldeã.
Do outro lado da ponte, sobre a ribeira e lameiros/margens, o registo do lado fronteiro que até às faldas da montanha se escoa. Casario sem plano unificador, mas onde o granito ou impera na totalidade, ou em detalhes denunciadores da matéria-prima que foi rainha na região. O enriquecimento durante e no pós-emigração trouxe algumas, poucas, maisons. Do surto migratório, a consequência maior e danosa para a arquitectura tradicional foi o efeito mimético dos que não arredaram pé da aldeia pobre – quem pela tinta não disfarçasse o granito afirmava a real diferença económica com quem arrojou, nos primórdios, “a salto”, fronteiras outras.
Nas ruas alcatroadas, outrora de terra batida, os plátanos e espécies outras de árvores viçosas são borda. A floresta próxima cresceu. Ida a que fora horizonte alto. Incêndios em sucessivas levas substituíram as matas por carecas disfarçadas com giestas floridas. Amarelas dominam, as brancas escasseiam. É memória o prazer de, chegado meio de Outubro, na base dos pinheiros encontrar míscaros, guardá-los na sacola para mistura com pedaços de cabrito, pão, carqueja aromática que o lume e a perícia da cozinheira transformavam em ensopado.
O Inverno chuvoso e frio, os nevões, o assobio do vento mais afiado que lâmina, encharcou os campos. Daí o verde do musgo sobre pedra, hoje, alimentado de quase nada. Mas sabe onde ir buscar o nutriente principal, a água, que à beira não falta e a porosidade da rocha também guarda.
Fim de tarde, hora da janta, é deixada para trás a aldeia/Aldeias. Ao estacionar na «vila» como ainda chamo à cidade, um de muitos chafarizes que vertem água do degelo na montanha. Simples, pelos limos e amarelecimento do granito por via metálica grita idade. Ao lado, trepam heras. Selvagens. Livres, conquanto o instinto sobrevivente as amarre à pedra.
No cimo do chafariz, alguma imponência pelo granito trabalhado onde os séculos deixaram marca. Não fossem as cicatrizes das feridas gravadas pelo tempo, parte do encanto e respeito desvanecer-se-iam. Assim, avançam intactos em cada dia corrente.
Casa, telhado, ferros, sacada sobre a ruela - Rua da Cardia chamam-lhe. Quem a vir tão preservada e adiante passar ignorará quem lá nasceu. Muitos o fazem. Os mais atentos não perderão pitada como o casal croata que por ali passeava. Parou, à máquina ordenou milhares de píxeis, nariz espetado ao alto. Cliques sucessivos. Eu com eles por gosto e para no SPNI mostrar.
A placa tudo diz.
Cortando na primeira à direita, calçada espevitada que de saltos, para quem os ali tem por base, troça, uns passos e restaurante de truz. Granito dentro e fora. É o Júlio a quem já o Quitério reconhecia mérito e não dispensava. Por ali, encontrei realizadores de cinema, músicos, escritores e gentes tão anónimas como eu que do lugar fazem romaria. Prato escolhido? _ Ensopado de cabrito e míscaros, pois então!
CAFÉ DA MANHÃ
Teresa C. e Abel Manta
Não foi ali que nasceu. Habitada por tias solteiras, mui pias, que nas férias diversas a mimavam - até aos cinco anos enrolavam caracóis desordenados em canudos; anos depois, cruzavam tranças castanho-escuro, serviam almoços saídos do forno a lenha, merendas com pão de trigo, centeio sem mistura, fatiado na hora, com manteiga, cozido no forno comunitário por mulher sabedora e diligente, queijo da serra, compotas e marmelada caseiras. E recusava sesta, prometia baixo o volume de som das risadas e gritos contentes, evitava juras de não andar descalça na terra fofa e grávida de bens. Ansiava pelo silêncio, moldura do sono das ancestrais, como silencioso chamamento da liberdade precária por três horas. Pelas cinco, regressavam normas e interditos, a merenda na sala de estar que agradasse à sobrinha e compinchas - leite com canela, limonada e o mais antes descrito. Com desgosto, a catraia ficava só. No baloiço dependurado na nogueira do jardim traseiro, alma cheia, lia e sonhava.
Pelas sete da tarde estival, regressava à liberdade tolerante do granito dos avós. Às quintas, dia de mercado na Vila, era entregue à vigilância permissiva das empregadas. Com as meninas filhas dos trinta e dois afilhados da avó, na maioria pobres ou com remedeio pouco, trabalhadores unidos por afecto à matriarca bondosa que fazia missão de vida encaminhar para futuros risonhos quem dela dependia, a garota saltava de penedo em penedo na ribeira bordada por margens de floresta, caía e encharcava os vestidos de folhos que serviam de bóia, secava-os a caminho do forno comunitário pedindo por ‘mor de Deus’ centeio e azeitonas. As forneiras riam. Benesses concedidas por acharem graça à miúda mais rural que todas, sazonalmente arribada da cidade grande que raras conheciam. Na criança, viam espontaneidade sem porquês. Talvez razão/fundamento para afectuosas memórias e sorrisos a cada reencontro.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros