Mike Bougher, autor que não foi possível identificar
São tulipas. Num ramalhete, verdes finos, outros carnudos, tons de rosa e de roxo desmaiados - tons pastel, digo. Oferta de gente linda que partilha comigo o trabalho/gosto. E quem não gosta de receber flores como símbolo de afectos construídos com verdade transparente nos gestos, entre eles a transmissão de saberes jamais arrogante, mas disposta a com todos aprender?
Porque o conhecimento não livresco é adquirido com aqueles onde descortinamos valias sábias, nos povoados grandes ou pequenos, do pastor ao idoso na fila do Centro de Saúde ou do autocarro, o segredo é conversa atenta. Quem nos outros concentra interesse, intui num ai quais as pessoas com muito para ensinar. A curiosidade encomenda o resto: entabular conversa, ouvir muito e pouco fala. E as pessoas escolhidas optam entre o silêncio e a dádiva das experiências relatadas. Também o silêncio permite aprendizagens e motiva questões: porque se recolhe no mutismo, porque alarga as fronteiras entre o ser e o dos demais. Se bem observarmos, alguns afastam-se e procuram espaço onde corpos alheios estejam afastados. Incapacidade de partilha social ou necessidade básica de preservar recolhimento individual?
Sou mulher viciada no perscrutar, não no estereotipado estilo da porteira ou da vizinha que o alheio vigia por detrás das cortinas. Interessam-me almas sem que me atreva a julgá-las. Entendê-las, sim. Por isto não me distraio de quem comigo se cruza ou segue ao lado ou à frente. Daqui as tulipas frescas onde o meu olhar se regala.
CAFÉ DA MANHÃ
Velazquez, “La Rendición de Breda”, Museu do Prado
Aventura literária começada por tela no Museu do Prado. Velázquez, o autor. "La Rendición de Breda”, o nome. Professora de História da Arte acompanhava punhado de adolescentes. Coincidimos frente à “Las Lanzas”, como é mais conhecida a obra. Imponente pelas dimensões, composição, luminosidade e transparência. Ouvindo a professora, como se fora mais um dos seus pupilos, fui além no saber sobre o contexto histórico retratado: a conturbada Espanha nos finais do século XVI e princípios do seguinte. Reinava Filipe IV. Decidida empreitada militar: a recuperação da cidade de Breda, na Flandres, como ponto nevrálgico para outros avanços nos Países Baixos. Breda cai e a tela reproduz a dignidade dos generais e militares de altas patentes no momento da rendição dos holandeses. Comentada a falta do Capitão Alatriste entre os generais Spinola e Justino de Nassau. Do tal capitão ao livro e seu autor foi um passo. À leitura do “Capitan Alatriste”, em espanhol, outro.
“El Capitan Alatriste”, o primeiro duma coleção onde são narradas as aventuras do arrebatado capitão por Arturo Pérez-Reverte, revelou-se memorável companheiro de viagem quando em Madrid o apelo havia sido a combinação de duas exposições: Picasso no Reyna Sofia, Modiglianni no Tyssen. Lembra as intrépidas aventuras de capa e espada de Dumas com diferença substantiva: Dumas não pretendeu expor a tragédia de ser francês, enquanto Arturo Pérez-Reverte revela toda a amargura vivida na decadente Espanha do século XVII sob o reinado de Filipe IV.
Réverte escolhe um mercenário, um personagem lateral à sociedade, porém orientado pela ética. No hoje, ontem e amanhã também contam, um proscrito pela atual manipulação de valores como decência, vergonha pela cobardia em vigor, dignidade, honradez e reputação. Personagem memorável como Sherlock Holmes, Marlowe, Hercule Poirot.
Regressada há dias duma surtida a Madrid, (...)
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Shari Warren
Começo de dia na cidade. No passeio, importada e impressiva torre. Esguia e ruiva. Barbicha. Ao lado, versão latina - magro como candeeiro de jardim, rabo-de-cavalo, barbicha liliputiana. A contradizer. Os dois como réplica em XL e M. Plácidos ao contrariarem a azáfama do dia inaugurado. E pensava: _ homem com rabo-de-cavalo remete para aventureiro na terra e/ou no céu. Como figurantes imaginários, mosqueteiros na espera de ordens secretas ao serviço de Ana de Áustria que a protegessem dum Richelieu malvado. O real desmentia: além de faltarem ou Athos ou Aramis, não cruzados ferros com a perícia que Dumas lhes inventara, somente lembravam cópias de 'Dartacão' impassível e sem chapéu. Que ventos os teriam feito poisar ali? Ela avançou, eles ficaram. Tão ociosos como o reparo.
O «magala» e a teenager. Partilhavam baguette ao caminharem. Ele, menos de vinte anos franzinos a que o boné da farda emprestava ar de soldadinho de chumbo. Ela, a petite Janette. Lado a lado. Rodando, rodando e rodando enlaçados enquanto as palhetas da caixa de música não cedessem à fadiga ou à tampa caída. Esmagá-los-ia o futuro? Perderiam o «amor-da-minha-vida», crença na cerca dos vinte anos? Comum mentira da verdade. Deles, o tempo de acreditar; da observadora, o de não o deixar fugir ou fingir.
Calcava o empedrado num firme balanço. Não temia a punhalada do frio. Pernas longas, esguias, terminando em petulantes stilettos. (...)
(...)E caminhava segundo a pauta dos saltos que escreviam S.E.X.O. em variação de código Morse no basalto e no calcário.
Nota: parte do texto acabado de publicar aqui.
CAFÉ DA MANHÃ
Imagem do Google
Não fora um Google atento a datas significativas e desconheceria esta efeméride que tanto me diz – na infância, chegado o tempo de Natal, era sabido assistir ao Quebra-Nozes ao vivo ou pela televisão. Penso que o meu amor pelo bailado terá começado com esta história mágica contada nos palcos também por artistas de nomeada a que não escaparam Margot Fonteyn e Rudolf Nureyev. O som dos passos bailados requer palco em frente e dele afastamento mínimo sem ir além da quinta fila. Em filme, também perdido o mover dos músculos, a precisão dos gestos. Pela ausência do essencial, muitos dizem, convictos, não gostar de bailado.
Selos comemorativos do 100º aniversário Olga Preobrajenskaya e Nikolai Legat
O Quebra-Nozes é baseado numa adaptação de Alexandre Dumas dum conto de Natal de Ernst Theodor Amadeus Hoffmann. Com a música sublime de Piotr Tchaikovskii, cenários e guarda-roupa suntuosos, coreografia de Marius Petipa e Lev Ivanov, bailarinos da célebre Academia de Dança de Vaganova, desde a estreia foi marco no bailado.
Fotografias de John Hall
O simbolismo está presente como fábula da passagem da infância à adolescência. Fundamenta-se no tema sem época do amor contra as forças do mal. Excelentes razões para divulgar Quebra-Nozes aos mais novos, seja ao vivo, em cartaz na cidade de Lisboa, ou através do filme produzido pela Disney (Fantasia).
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Jan Davidszoon de Heem, Natureza Morta com Violino e Livros,1628
Ela, como tantas, mulher Maria. Ele, Mário. Apresentados por terceiros, como soíam dizer, perguntada a origem do conhecimento. Na verdade, fora a «rede» que os capturara num instante de arrojo – intimidade do par que recusava escâncaras do porquê, do como e do onde. Mas não ocultavam da cidade e dos passantes abraços e beijos, mãos dadas, olhares e risos que sempre denunciam amantes.
A Maria era livre de atilhos românticos ou do que deles fizessem vezes. O homem Mário estava, até à Maria, gostosamente enredado numa relação estável com anos de histórico e cumplicidade e afeto. Mergulharam fundo nos enlevos preliminares do que julgavam paixão: marcado casamento daí a seis meses. Até seria, não fora o fatum estragar o quadro florido de mimos e beijos e o mais concluído.
Figurassem contrariedades, inexistente o comodismo da Maria e do Mário, as peripécias dos adeuses vários e dos regressos em idêntica proporção, a esmo tivessem acontecido monólogos, queixas, rogos e súplicas, inteligência e astúcia, haveria história para romance de cordel. Mas não: ganhou a passividade. Em vez de um protagonista, dois, sendo que nenhum deles desempenhou o papel de infeliz herói, ganhador somente no fim. Foi-se a faca e o alguidar onde o sangue emocional seria aparado. Por tudo não acabou a história pendurada em cordéis e barbantes, com os «cordelistas» arranhando violas enquanto, empolgados, animavam o povo à cata de ‘cobres’ dos compradores.
Anos atrás, comentadora deixou registo aqui:
_ “’Romance de cordel’ não tem a ver, precisamente, com as grandes sagas que alimentam o nosso imaginário desde os tempos medievais - "Tristão e Isolda", "A morte de Artur", por exemplo? E que mais tarde, perto do século XIX, quando o romance se assumiu como uma das expressões mais adequadas de uma burguesia cada vez mais poderosa, foi "vulgarizado", e chegou aos consumidores na publicação de jornais - lembro a grande "onda" de romances de Alexandre Dumas, Victor Hugo que em Portugal foram publicadas na imprensa, já no início do século XX.
Creio que se refere à ao nosso gosto por histórias, à necessidade de acrescentarmos à nossa realidade aquele espaço «contrafatual» que permite o sonho e a subversão.”
"Romances de cordel" ou "matéria de que são feitos os sonhos?”
CAFÉ DA MANHÃ
Do pintor de hoje, Jan Davidszoon de Heem, mostra.
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