Quarta-feira, 29 de Maio de 2013

LÁGRIMAS, MONDEGO E SILÊNCIOS

 

Aguarela de Júlio Rodrigues

 

Rematámos a noite na Quinta das Lágrimas. Antes, os nossos passos estalaram o cascalho do parque rente ao Mondego pródigo em vetustas tílias e carvalhos. Os papiros antecipavam a subtil corrida das águas serenas. Como nós. Tu debruçado sobre o rio, eu aproximando-me de mansinho. Ontem, ou anos atrás? Deliberadamente confundo tempos e momentos de afetos encastoados. Como joias de família que aguardam num cofre a luz e a pele.

 

Na conversa, evitámos a avareza. Mas houve silêncios desejados e alegremente consentidos. No velhinho e vazio largo das «Ciências», lembrámos itinerários - as descidas das ruas torcidas com empedrado gasto em que a chuva mais depressa fazia deslizar os pés do que o corpo. O sol poente avivava as cores do casario amontoado até ao céu, entrecortado pela alegria do arvoredo da Sereia. E foi falador o silêncio que tu e eu respeitámos, receando quebrar a magia, precária como todas.

 

Consertáramos pernoita na Quinta das Lágrimas. A fartura regada do jantar exigiu cafeína e palavras e caminhada pelas ruas escusas que tricanas e bandos de capas negras em idos calcorrearam. Dizem e acredito no fado de Coimbra como loa à beleza e à eterna crença no amor. Na entrada do palacete da Quinta, a Dona Inês e D. Pedro em obras do Pinto-Coelho detiveram-nos. (...)

 

Nota: texto integral no “Escrever é Triste”.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:49
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Quinta-feira, 4 de Abril de 2013

NUM LUGAR TAMBÉM MEU

 

Abel Manta

 

Quem não for com missas é favor passar adiante. Fiquem as palavras para os resistentes. O sétimo dia em que Deus terá descansado ficou oficializado ao domingo. Nas cidades grandes, é pretexto para fugas, o nada-fazer, limpar os metros quadrados que as paredes domésticas limitam, “passeios-dos-tristes”, para namorar ou para discussões conjugais. O freguês pede, o domingo dá.


Nos meios pequenos, os itens continuam semelhantes. Todavia, há acrescentos de monta. A missa congrega crentes e não-crentes. À volta dela, gira a manhã do dia. A partir das oito, batem portões e saem os madrugadores. Cuidados no trajar, os casais de idade são os primeiros a cumprir o ritual. Deixam para depois a feitura do almoço. Havendo família a juntar, mais tempo sobra para os paparicos que, amorosamente, reservam aos filhos e netos. Quem entende que o domingo também existe para remanso nos lençóis lavados, escolhe outra missa. Duas horas mais tarde, batem outros portões.


O centro urbano/rural acumula homens nas esquinas sombrias à beira da Igreja Matriz. Há «entra-e-sai» no café fronteiro. Na esplanada, servida também por tílias, ocupam lugares costumados os clientes sem era e da terra. Novatos ou passantes ficam com as sobras. Ponto de observação privilegiado, enche o olhar de quem está. Feitos os cumprimentos e o escrutínio, chegando a hora aprazada que o sino não lembra, continuam sentados turistas, descrentes e comodistas. Quem preza observar os mandamentos católicos entra na igreja. Muitas mulheres, poucos homens, cabelos brancos, coro afinado e treinado na função, homilia morna - aprendi que alegria espalhafatosa não faz parte das normas do reino de Deus. Acabada a função, todos dizem ámen e eu com eles. À saída, nova rodada de beijinhos e apertos de mão. Sabem como as amêndoas na Páscoa - na época, são delícia, durando ano inteiro, talvez perdessem o gosto especial.


Naqueles lugares, a hora da missa dominical acaba por constituir celebração ecuménica - reúne ateus, católicos de batizados, casamentos e funerais, católicos de todos os dias, coscuvilheiros e fãs da exibição. Mais abrangente, não há.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:21
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Quinta-feira, 18 de Agosto de 2011

CANTARES NA MINHA ALDEIA

  

Do espólio familiar (autor das letras e da música Artur Brojo) e de S. Cosmado-Aldeias.

 

“Do alto da serra,

Olhei pra baixo e vi

A igreja da minha terra

A casinha onde nasci

 

Vejo além ao longe

Um regato e uma fonte

E uma linda capelinha

Tão branquinha lá no monte

 

Vejo da minha janela

Toda a casinha singela

Nesta aldeia de encantar

Vejo lindo panorama

Que logo a atenção me chama

Para depressa adorar

 

Vejo as ovelhas no monte

Correr a água da fonte

Por enormes ribanceiras

As moças ao regressar

Depois do trabalho acabar

Cantam lindas ramaldeiras.”

 

Enquanto na “Sociedade Industrial” –Amarantes, as lançadeiras iam e vinham, obedeceu ao ritmo e compôs a música do “O meu Amor é Pastor” (poema escrito ao serão do mesmo dia). É considerado património do folclore do Concelho de Gouveia.

 

“O meu amor é pastor

Já anda a aprender a ler

Já comprou uma cartinha

Para depois m’escrever

 

Rapazes e raparigas

Cantai cantigas

Batendo o pé

Também canta o meu amor

Que ele é pastor

Ai lariló-lé.”

 

Artur Brojo tinha profunda consciência da opressão dos trabalhadores pelos donos da terra coadjuvada pela sua experiência fabril (referido em “Maria e Sario”). Embora desse trabalho a quem precisava, jamais explorou o suor alheio. Exemplo duma quadra musicada que, segundo os recontos, criou e o povo a que tinha orgulho de pertencer cantava sob o peso da enxada.

 

“Ao malhar da borda

Vinho à malha

Se o patrão não paga

Fica o pão na palha.”

 

Com António Pinho Brojo e o amigo deste, André, nas férias em S.Cosmado, ambos exímios tocadores de viola e futuros catedráticos de Farmácia na Universidade de Coimbra, nos serões da família e por onde calhava, tocavam até de madrugada.

 

O António, o André mais o Zé Roque faziam serenatas de encantar. O poema seguinte fez parte duma em favor da, ao tempo muito jovem, tia Maria do Céu, vinda ela de férias do Colégio do Sagrado Coração de Maria, na Guarda, onde prosseguia estudos.

 

“Ao longe

Ao cair da tarde

Quando no mar

O sol lentamente

Se vai apagar

É que eu penso

No teu olhar

Tão meigo e profundo

Que me deixa a sonhar.”

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 07:56
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Sexta-feira, 22 de Abril de 2011

COUVE QUÊ?

Autores que não foi possível identificar. A escultura é obra do Mestre Alves André.

  

'Solinho, solo, solita'. Assim vai a maré cheia que do antigo Basófias a Aguieira fez rio sério. Tricanas desaparecidas, «fadunchos» em pousio até a Queima chegar com cartolas, fitas e «grelos», bebedeiras para festejar que anestesiam euforias e nem autorizam lembranças das festas da festa por calhamaços e sebentas medida a espera. Excessos que atiram para bancos de jardim, passeios e valetas os incontidos licenciados e aqueles que aguardam idêntico grau de alforria – falsa pela futura condição de escravos em serviços e empresas e nas vindas desiludidas dos Centros de Emprego. Ora, sendo Portugal um dos países com maior rácio de graus académicos e superiores, ajuntamos nível rasteiro pela abundância dos desistentes. Falha preparação anterior, falha disciplina no estudo, falta dinheiro para bolsas com retorno ao bolso de cada um pago quando o licenciado iniciar vida laboral – vida activa têm os nossos alunos, mas noutras áreas cuja avaliação não consta dos curricula. Estas áreas paralelas sempre existiram e, pelo constado d'antanho, com bons frutos profissionais, não foram veteranos que da academia fizeram casa por anos muitos à custa dos pais e de todos.

 

Voltando às tricanas. Depenicava insignificância, rondando o meio-dia, quando no Central as pupilas não desgrudaram de quem inquiria o funcionário mais pedante que afável. Era, é – desde há horas, não deve ter fenecido - mulher com mais de setenta anos pelos estragos na face; avental com folhos e laçarote traseiro armado com perícia, xaile traçado, lenço colorido como consta das aguarelas que mãos idas tingiram, chinelar pausado, blusa «enfolada». Chegada ao alvo mais pedante que afável, pergunta-lhe o preço da sopa:

_ Um euro e sessenta.

- Tem o quê?

- Feijão, cenoura, nabo, e couve.

_ Couve quê?

_ Vou perguntar à cozinha.

Mãos na anca, a chinela tocava pressa. Volta o homem, Sr. Funcionário.

_ Coração de boi.

_ Ainda se fosse lombardo ou portuguesa!

 

Gira nos saltos rasos e arrasa o afável por obrigação, a estrangeirada pela atitude, os portugueses pela convicção. Houvesse muitos calibrados por tricana retinta que não precisa de cântaro para ir à fonte e outros seríamos. Nem o FMI cá estava, nem a lusa moleza que o trouxe era atavismo.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:16
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