1ª tentativa de aguarela em grande formato e carvão do final da minha infância inspirados nos testemunhos da tia da pobreza no mundo
“Querida Rosinha e Manuel,
(…) Recordo a missa nas Aldeias, linda na sua simplicidade.
Tenho a certeza, a certeza da Fé, de que os nossos queridos pais estão felizes e são eles, com certeza, que pedem por nós.
Fiquei muito feliz com o gesto discreto do Manuel, quando foi ter contigo ao café. É assim, o amor alimenta-se de pequenos gestos de ternura que vão ao encontro da sensibilidade de cada um. E nesta etapa de vida, vós e eu, não precisamos de grandes coisas, mas de gestos de amor verdadeiro e profundo.
E pronto. Estou feliz por ter escrito tudo isto. Uma encomenda deve chegar na 2ª ou 3ª feira.
Beijinhos, beijinhos da Mª do Céu
P.S. – Deixei o carregador do telemóvel na sala de jantar. Arranjei solução aqui. Não se preocupem. Tragam-mo quando regressarem a Coimbra.”
Assim termina a carta cuja publicação foi iniciada ontem. Termina também no SPNI a homenagem à tia Maria do Céu Brojo iniciada esta semana. Não esqueço a influência que esta mulher excecional teve no meu percurso. Desde cedo e pelo diálogo, orientou-me leituras - Sartre, Camus, Simone de Beauvoir e outros sempre na língua original -, depois discutidas em família, que completavam as que os pais recomendavam. Sempre respeitados a minha curiosidade e gosto.
Uma das músicas que a preenchia era o “Imagine” dos Beatles. Trauteava-a frequentemente com a sua magnífica voz. O conteúdo da letra harmonizava-se com um dos objetivos da missão que escolhera aos dezasseis anos, ainda estudante no Colégio do Sagrado Coração de Maria na Guarda. Para trás, deixou o início de um namoro feliz com o António Pinho Brojo. Este e os pais, a avó Mamia e o avô Artur, tentaram demovê-la. Assentiu em refletir nos dois anos de espera pelo noviciado. Na “Ordem do Sagrado Coração de Maria”, já em Lisboa, escolheu o nome de Madre Anunciata. Prosseguiu estudos nas Universidades de Salamanca e Roma. Lecionou nos colégios da Ordem e em vários liceus do país, sempre vigiada pela PIDE. Razão? Não perder uma oportunidade de apelar à justiça social e, mais tarde, à "Teologia da Libertação". No final dos anos setenta, optou por “Les Frères de La Charité” a que ainda pertence.
Imagine
Imagine there's no heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people living for today
Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people living life in peace
You, you may say
I'm a dreamer, but I'm not the only one
I hope some day you'll join us
And the world will be as one
Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people sharing all the world
You, you may say
I'm a dreamer, but I'm not the only one
I hope some day you'll join us
And the world will live as one
John Lennon
CAFÉ DA MANHÃ
Detalhe duma experiência minha a óleo em honra do avô Artur Brojo e duma das casas da família, a "Casa do Prado", sita em S. Cosmado, Aldeias
Do espólio familiar e de S. Cosmado-Aldeias (autor das letras e da música Artur Brojo).
“Do alto da serra,
Olhei pra baixo e vi
A igreja da minha terra
A casinha onde nasci
Vejo além ao longe
Um regato e uma fonte
E uma linda capelinha
Tão branquinha lá no monte
Vejo da minha janela
Toda a casinha singela
Nesta aldeia de encantar
Vejo lindo panorama
Que logo a atenção me chama
Para depressa adorar
Vejo as ovelhas no monte
Correr a água da fonte
Por enormes ribanceiras
As moças ao regressar
Depois do trabalho acabar
Cantam lindas ramaldeiras.”
Enquanto na “Sociedade Industrial” – Amarantes, as lançadeiras iam e vinham, obedeceu ao ritmo e compôs a música do “O meu Amor é Pastor” (poema escrito ao serão do mesmo dia). É considerado património do folclore do Concelho de Gouveia.
“O meu amor é pastor
Já anda a aprender a ler
Já comprou uma cartinha
Para depois m’escrever
Rapazes e raparigas
Cantai cantigas
Batendo o pé
Também canta o meu amor
Que ele é pastor
Ai lariló-lé.”
Artur Brojo tinha profunda consciência da opressão dos trabalhadores pelos donos da terra coadjuvada pela sua experiência fabril (referido em “Maria e Sario”). Embora desse trabalho a quem precisava, jamais explorou o suor alheio. Exemplo duma quadra musicada que, segundo os recontos, criou e o povo a que tinha orgulho de pertencer cantava sob o peso da enxada.
“Ao malhar da borda
Vinho à malha
Se o patrão não paga
Fica o pão na palha.”
Com o primo António Pinho Brojo e o amigo deste, André, nas férias em S. Cosmado, ambos exímios tocadores de viola e futuros catedráticos de Farmácia na Universidade de Coimbra, nos serões da família e por onde calhava, tocavam até de madrugada.
O António, o André mais o Zé Roque faziam serenatas de encantar. O poema seguinte fez parte duma em favor da, ao tempo muito jovem, tia Maria do Céu, vinda ela de férias do Colégio do Sagrado Coração de Maria, na Guarda, onde prosseguia estudos.
“Ao longe
Ao cair da tarde
Quando no mar
O sol lentamente
Se vai apagar
É que eu penso
No teu olhar
Tão meigo e profundo
Que me deixa a sonhar.”
CAFÉ DA MANHÃ
O par de sequências musicais do avô Artur Brojo abaixo interpretadas pelo Rancho Folclórico de Gouveia, possuem o encanto raro da genuinidade que letras e pautas contêm. Poemas belos que o povo mais idoso das Aldeias ainda trauteia. Giacometti, amigo do avô, garantia a ancestralidade dos temas e ficou pasmo quando numa das visitas teve nas mãos os originais em papel datados e assinados. Aconselharia, a bem do património musical português, deixar cair no esquecimento o autor. Pelo amor aos Hermínios, suas gentes e tradições, o avô concordou e assim aconteceu.
Por ser dia de festa na família, cabe partilha de memórias risonhas.
“São Brás do Coito desafoga um para afogar oito!”, diziam os serranos numa engasgadela de truz. A reza era egoísta e a léguas dos preceitos católicos que os levavam a recorrer aos sacramentos e às procissões em carreirinha de gentes, banda de música e andores. E à missa, ponto alto da semana aldeã. Antes, havia o banho em selha que panelas de água quente enchiam, camisa lavada e calças vincadas. No adro, os homens remexiam as novas (velhas?) desavenças sobre a partição das águas de rega, futebol, mexericos e, o mais importante, a entrada das mulheres para a Igreja. Fossem moçoilas ou casadas, às mais vistosas endereçavam olhares de carneiro-mal-morto.
Pela semana, havias as serenatas nocturnos às meninas cobiçadas pelos que em Coimbra estudavam. Por arte da viola e da guitarra, que as gargantas afinadas ilustravam, mereciam o acender três vezes das luzes da casa - código de agradecimento pelo desvelo. Rosto não podia assomar à janela, ou ficava a rapariga «falada». O romantismo dessas noites até hoje ecoa.
Ao longe,
ao cair da tarde,
quando no mar o sol lentamente se vai apagar,
é que eu penso no teu olhar tão meigo e profundo (....)
Esse foi o tempo das prendadas meninas de família que incluiu a mãe e a tia. Nas sobras do colégio, aprendiam pintura e bordados. Música também, ou não centrasse a casa dos avós tertúlias onde o fado de Coimbra era rei. Mas não só. O Giacometti, o querido Raul Solnado, ontem falecido, o Vergílio Ferreira, entre outros, por lá passaram.
Nas férias, conhecido tocador de viola, cujo apelido partilho e a quem a canção coimbrã muito deve, voltava à casa dos avós graníticos no bem ser e melhor parecer. O pobre do rapaz, aos domingos, era compelido a aperaltar-se e, junto à avó, assistir à Santa Missa. Ele preferia o coro onde somente homens tinham assento e lobrigavam as pernas das mulheres ajoelhadas. Mas não!... Davam-lhe rédea curta e ficava rente ao prie-dieu da matriarca. Eis quando ouve, atrás de si, um sussurro. _“Quero fazer xixi”, dizia um petiz.
_“Não aguentas?”, retorquia a mãe.
_“Nãoooo!” respondia o miúdo aflito.
_ «Atão» vai ao adro”.
Silêncio. Instantes passados, a mesma voz infantil:
_ “Não o «átxo»!”
_ “Como nãTo o «átxas? Chega-te para te desabotoar melhor os calções. Já está. Desanda!
No entretanto, esganiçavam-se as vozes em salmos cantados que arranhavamo ouvido o do tocador . Silêncio, enfim! Sente o garoto voltar ao assento e ouve a pergunta da mãe:
_ «Atão, atxáste-lo»?”
O petiz::
_“«Atxei-o»!”
_“Dominus Vobiscum”, terminou o pároco que havia de ser meu tio bisavô.
CAFÉ DA MANHÃ
"Calou-se para sempre a guitarra imortal."
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros