Julia Cuddlewell - Garden of Paradise Anthony Christian - Bread and Wine
Três homens e uma mulher. Quadrilátero em que ela é diagonal e vértice. Por intervalos breves, na memória recuados, com dois deles partilhara lençóis protegidos e negrumes urbanos como reposteiros de veludo que a nudez e os sexos esconderam. Com o Miguel tecia palavras acoitadas no desejo incumprido. Pela adivinhação própria de amantes que antes de serem já eram, ela sabia-lhe o deleite solitário ao evocá-la. Ele dela supunha o mesmo. Engano – somente depois do beijo, ela anteciparia sabores outros a cuja cascata se renderia ou não.
Passada a mudança do ano, foi lavada a intimidade violeta e prata, mais as meias cinza-chumbo de liga extensa que a mini de pele da mesma cor uma vez ou outra revelara – a abertura lateral, pelo atrevimento, encantou a mulher e a quem o rasgo era dirigido. Dias depois, cada um dos três homens, relatou a última festa do ano. O João foi o primeiro. Comprara as lagostas costumadas na vigência do casamento findo. Antes da ceia solitária, vestiu o smoking como fizera enquanto “marido”. À mistura com riso triste, a amiga ouviu: “comi uma lagosta, congelei três. Mantive afastados corpos em que, pela descrença, durante o ano me disperso. Testei se o botão das calças do smoking não disparava como rolha de champanhe. Não disparou. Fiquei contente.”
O Rui disse: “esparguete e carne picada. Cidreira quente e água. Liszt, piano e orquestra numa quase valsa. O Irc como interlúdio e (des)esperança. Então, mesmo sem sono, a cama em geometria, sentiu o frio do lençol na nudez do corpo. Depois, e só então, dormiu.”
Do Miguel soube o gosto por vodka, os cigarros queimados e o omitido.
Porque com o João – fêmeas como hobby e impulso - abordara a tristeza que, após o divórcio, lhe conhecia, ouviu: “fiel só o homem bíblico. Antes um amante promíscuo do que marido ressonando na cama. Elas preferem.” A mulher, para si, lembrou as orgias das carnes que fizeram Moisés subir à sarça ardente e destruíram Sodoma e Gomorra. Tolerante, cortou rente o “discordo”.
Entre desabafos, o Rui volveu ao tema. É infiel à namorada. Causa? _ Ausência de retribuição à altura do afeto dedicado, embora almeje razões para a fidelidade. Confirmou, sem saber, a metáfora do “homem bíblico”.
A propósito dos amores da vida dele, o Miguel contou à mulher: “Acredito na entrega única, total e absorvente. Tudo ou nada.”
Da amiga, mais velha uma década, ouviu contos de casais conhecidos. Eles com “outras” em Madrid, Bruxelas e Montijo. “Nem acompanhado pela mulher «certa» o homem se contém. Daí a graça e o desafio.” E quando uma mulher sábia aceita alegremente a infidelidade masculina, ela, diagonal e vértice, equiparou a trivialidade do Joao e do Rui à Aspirina. Entretanto, com o Miguel intervala ócios inocentes.
CAFÉ DA MANHÃ
Luis Royo, Anthony Christian
Adormeci tranquila. Suportei, ora enfadada, ora irritada, ora indiferente, os dislates e a desavergonhada campanha eleitoral. Campanha de vizinhos ressabiados pelas malfeitorias que uns aos outros atribuem: _ estacionaste no lugar que todos sabem ser meu; dispondo-me a dormir, grita música na tua casa ou gritas tu e a tua rameira pelas marteladas na cama quando a minha senhora está aferrolhada na flanela do pijama e ronca, benza-a Deus!, que já me chega a Cidália dos Olivais; acordas-me quando bates com estrondo a porta ao saíres às sete; interrompes-me o jantar ao entrares em escandalosa risada com as tipas que engatas e tenho de espreitar pelo ralo, não hajas, por acaso, feito cerco nos Olivais.
Atingido o apogeu com a vitória da abstenção e os mais de vinte por cento conquistados por candidatos sem partidos com andores para o transporte «campanheiro» ou elevados por andas até à escolha (im)popular, surgiu a boa nova: a partir de ontem, tenho Provedor do Povo disponível para acudir aos expulsos de sobrevivência digna. Não deu o endereço do escritório em Belém, mas chega a Roma quem pergunta. Vítimas de injustiças sociais poupem cobres para papel, envelopes e selos. Doravante, confessionário aberto nas horas de expediente. Não vale com as queixas fazer aviões de papel e apontar para a marquise mais conhecida do país. Essas, leva-as o vento. As outras caem em saco roto, mas para o caso e função dá no mesmo – importa é desabafar com o passado e novo ‘garante da estabilidade nacional’.
CAFÉ DA MANHÃ
Anthony Christian
Acordei tresmalhada – mulher que sonha com Newton mais a macieira da lenda gravítica a poucos minutos de abrir para o dia as pestanas não pode estar sã. Algum bicho incubou larva em ninho cerebral identificado, conquanto ignoto o lugar da procriação. A macieira, juro porque ‘vi’, era árvore pequena num bosque de outras centenárias. Encontrá-la foi demanda longa, maior que a do Santo Graal.
Carvalhos de seiscentos anos, faias de trezentos, teixo de mil, castanheiro que dum milénio passou. Senhor ilustre que de lado nenhum conheço, Brian Muelaner, disse: _ “Ficar perto de uma árvore antiga, que viveu séculos de história, pode ser uma experiência de humildade.” É verdade – sem dispensa da ordem precária, passam no largo, incomparavelmente mais avantajado que o meu. Idear a morte não me aflige, mas testemunhar vidas milenares deixa-me mais pequena que no momento do arribar da consciência lógica. Se árvores velhas morrem majestosas, hirtas e enramadas nas copas cheias, o ser humano minga com o deslizar do tempo enguia, fugidio como ela ou peixe.
Newton, o génio que no campo buscou refúgio da cidade malsã, surge como símbolo de quem esbraceja contra a penúria vivida e a pior anunciada. Outra interpretação do sonho espreita: vontade de encontrar a raiz do talento que de poucos faz maiores no caldo anónimo. Não é delírio este sinal de utopia falhada? Mal digerida? Ou ambição de o próprio resistir à dúvida de chegar a horizontes longe? Nem com par de doses de cafeína curta e quente encontrei resposta. Nem esperava. O mistério dos sonhos é substrato para interrogações e procuras e crescer.
CAFÉ DA MANHÃ
Anthony Christian
Está escrito: “O Restaurante Olivier mudou-se para a rua do Alecrim, integrando-se no Olivier Café, agora denominado somente por Olivier. As cadeiras pretas e as pinturas de Lisboa foram substituídas por fitas de cetim dos coxins azuis e rosa e mesas douradas, recriando um ambiente parisiense do século XVIII. O restaurante serve apenas jantares, pensando essencialmente nas pessoas que jantam tarde. O espaço mantém os «top 10» pratos do Olivier Café. Acrescentou o menu degustation, composto por cinco entradas frias e cinco quentes, sorbet com vodka e prato principal à escolha. Solte a gula e a luxúria.”
Soltei. Cliente do antigo Olivier, no novo entrei com desconfiança. Omissa a simplicidade e aperto do primeiro, a presença afável e conselheira do chefe Olivier. Mais estilizado, menos propício a quem demanda «descomplicações» num jantar. A sofisticação quase nunca me rende - o «quase», leal, exceptua momentos raros em que formas de arte tudo o mais esquecem.
Ainda assim, quem preza fruir noites peregrinas na “Cidade Branca” garanto – lugar donde saem satisfeitos olhos e palato. Depois, subir a rua ou descê-la a pé e soltar amarras junto ao rio. Quem souber do sítio altaneiro sobre o casario iluminado, que ascenda e se abrigue na música viva. Três quartos de círculo em vidro, ângulo raso no terraço permitem que o olhar vagueie na serena estrada de água em frente. A que faz de Lisboa urbe feiticeira. Que a ilumina ou entristece seguindo imprevisíveis humores celestes.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros