René Magritte, The Lovers, 1928
Chegara tarde: as horas extraordinárias no trabalho esticaram-se a mando do mandador. Sabia-a dormida. Outro serão entre paredes cujas manchas e frestas a mulher conhecia de cor ao meditar no casamento em que o seu homem era visita em vez de companheiro. Nem os fins-de-semana partilhavam pelo trabalho em turnos - nesta semana, calhara o dia.
Ao deitar-se sorrateiro, não acordasse na mulher a tristeza, também ele tentou embalar o sono afastando do pensar o quotidiano mal pago, a exploração que aos dois castigava. Adiar filhos, consequência. Talvez um dia a vida girasse. Talvez gravidez e família como o desejado. Talvez ganhasse o “euro milhões”.
Recusando Morfeu acolhê-lo nos braços, levantou-se. Na cozinha, fruta da época; pouca, que a soma do pré de ambos a mais não chegava. Retirou maçã luzidia, verde na cor; polpa suculenta, parecia. Aconchegado no sofá puído, olhava a maçã. Perfeita. Rodou-a na mão. Tomara que o seu pequeno mundo fosse assim macio e não tolhesse os sonhos que ele e a mulher haviam construído no início. E rolava a maçã. E a paz conquistou-o. O sono chegou com ela.
Ao acordar no sofá, já a mulher havia saído para as limpezas no banco - ‘ponto’ não ‘picado’ a tempo obrigava a desconto no salário mínimo. Seis da manhã, informou o despertador aos gritos. Era o duche, a carcaça mastigada à pressa, o café doméstico. No gingar do comboio, impôs-se o sonho vívido. Lembrava detalhes, não o todo. Maçãs como rostos, chapéus de coco, homens de fato e gravata negros pingando do céu, cachimbos. Bizarro, concluiu.
René Magritte parody
A concentração no trabalho manteve incólumes as imagens. Mais viu: beijo quente trocado com a mulher. Senão: rostos tapados e lábios sem contato direto. Beijo era, mas faltava a suavidade das marés nas bocas. Pela vida e culpa própria, resumo dum amor descuidado.
René Magritte
Nota: texto publicado aqui por inspiração deste do Diogo Leote.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros