Mihai Criste – The Last Paradox Mihai Criste - In Memory Of Rain
Obesa. Gordura sobrando das calças e da T-shirt justa. Por cima, polar e capuz enfiado até meio da testa num começo de manhã primaveril, chuvosa, fria a lembrar Inverno teimoso na despedida. Ténis. Tudo rosa fúcsia. Isolada no canto murado de um jardim, lia revisteca: “Cuore”. Rosa como a «farda» juvenil. Dezasseis anos, não mais. Longe doutros adolescentes em bando ou repartidos em grupos. Nem ela os via nem eles a olhavam com a cobiça incipiente que as hormonas em alta ou a mera curiosidade pela diferença suscitam.
No interlúdio do café, a repetência da garota, mulher futura. Só. Como encosto, ainda a parede, ainda o capuz cobrindo testa e cabelo. Indiferente e sita na margem da indiferença de rapazes que podiam ser namorados e não eram. O corpo anafado desobedecia aos padrões rígidos e comuns numa sociedade normalizada que cobiça nas prateleiras do super ou do hiper maçãs com brilho químico, tamanho semelhante, sabor a cortiça vinda do frio/conserva. Causas e efeito. Consequentes.
Desprezada, a mancha larga/pessoa ignorava o redor. Cegueira deliberada. Eriçada a proteção do «eu». Nos cantos, procurava refúgio. E sofria com a “Cuore” aberta que a vergastava com imagens estilizadas. Cruéis. Talvez ilusões nas gotas de chuva que recebia no rosto como promessas de um amanhã sem capuz. Outono antecipado na Primavera da vida.
CAFÉ DA MANHÃ
O namoro com a “Grande Alface” pode recomeçar ali bem junto a São Bento, na primeira à esquerda para quem chega ao Largo vindo do Rato e desceu o empedrado. Chamam-lhe Praça das Flores e nome mais a propósito não poderia ter - cruzada por caminhos que separam gradeamentos de parcelas onde, no Outono, árvores antigas derramam pétalas delicadas que juntas e no tempo do viço são flores. Agora, atapetam escadas e carreiros. Sobram para o passeio que contorna o jardim e quase atrevem entrada na beleza dos prédios modestos.
Nos restantes dois lados do quadrado que a Praça quase delineia, a arquitectura permanece despojada, feita excepção ao edifício encantador forrado a cerâmica com tons tipicamente portugueses, azul e ocre, nesta arte onde temos mestria. E há vozes no lugar, alegrias infantis traduzidas em aniversário denunciado pelos balões à janela, pela porta também enfeitada, pelo entra e sai da pequenada que ri e corre em bandos. Juntam-se ao chilreado que das árvores ecoa e desce e enche de bem-estar almas por ali voando assentadas ou passeantes.
Mas foi amizade de anos e o brunch que na das Flores reuniu três mulheres. Nos passadiços exteriores e dentro do “Pão de Canela”, servidas delicadezas gastronómicas tão variadas como as conversas repartidas por gentes com o bom gosto de não incomodarem terceiros. As três mulheres, duas gerações, puseram em dia o que o espírito decide verbalizar, lembraram épocas idas, reflectiram o hoje. E houve presentes, pois então!, que uma delas, além da profissão, tem criatividade e talento para dar e vender. Porque generosa, ofertou-me peças originais como todas as que lhe saem das mãos. Pela surpresa e de tão lindas, comove sentir que amizades podem ser traduzidas em objectos feitos de ternura. E que dizer da nossa jovem mulher? _ Que é dada ao belo, que projecta perfeições no que faz, formosa no íntimo e no visível.
CAFÉ DA MANHÃ
Colecção "Outono nos Parques de Lisboa - 2010"
Outono pardo em Lisboa. O céu promete água que não vem. Almoço frugal em parque conhecido pelos da Grande Alface que às bondades da cidade não restam indiferentes. Câmara/olho aprisiona tempo. Falácia – regista instantes dos múltiplos tempos em que as muitas pessoas são. Exclusivo, sim, o olhar treinado e falsamente absorto do redor. Vê parte, bebe o todo, sente a humidade, colhe pingos na mão aberta. Botas rasas e polar, jeans colados, losangos nas meias de lã. Mais não quer. Quente por dentro, face tépida pelos dezassete máximos. Dos troncos cortados como lenha para lareira sem modernices recuperadoras de calor, inventa aroma da madeira ardente. No banco, encontra assento e tempo para digerir, do lugar, o vintage. Espesso e doce.
Nas subidas em escada talhadas com pedra ou em ponte de cimento novo que recriou o ido, no manto de água encarreirado onde jaz manto de folhas, pensa a libertação da Nobel da Paz, Aung San Su Hyi. Também ela sorriu à porta da casa/prisão duma década como os aloe vera que nenhum jardineiro mandador ordena ou limita o crescer. Também hoje reiniciou a actividade política com o brilho de quem acredita numa Birmânia democrática e por ela lutou, lutará. Também os aloe vera exibem verde brilhante sem pó de anos ou circunstância que desbote a cor original - porque chuva os lavou, porque resistem e enfrentam com mansidão corajosa agressões exteriores.
Ao lado do bosque a árvore, palmeira antiga que centra a irregularidade das fronteiras do lago. Outra que tão alto não logrou subir desafia quem julga bastar um salto para da ilha ver a margem. Água parada é espelho. Reflecte o de cima, mostra o simétrico, não o contrário. Nas bordas, pedras-assento sugerem detença: que o intruso se alimente de paz na quietude do bosque com surpresa líquida num lado, que inspire bondades e expire desassossegos ociosos.
Ainda do lago margem. Varandim que não é, mas, de longe, simula. Arcos feitos de pedras mal partidas/mal paridas. Parecem amontoadas com pressa e mais não serem que ímpeto da imaginação feito matéria. Engano: obedecem ao gosto do tempo, da moda, da Regaleira, de parte do Botânico em Coimbra, doutros redutos verdes por este povo concebidos ou copiados de alheios. Jardins que à geometria não obedecem, que aliam liberdade e ordenada expressão escrita, legível para quem os códigos souber/quiser entender. Olhados troncos, resto de podas ou de árvores caídas por algum ventar maldoso, parece aleatória a disposição sobre a relva misturada com ervas que húmus não rejeitam. Será. Dói à mesma ver cepos com seiva a resinar escorrendo dos cotos.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros