Quarta-feira, 14 de Maio de 2014

O PRIOR DE TRANCOSO

     

Fernando Botero

 

Correndo a população do interior para o litoral, segundo dados últimos do INE, é de lembrar idos em que os priores/párocos/padres contribuíam, denodadamente, para o aumento da taxa de natalidade em zonas recônditas do território português. Tivesse Pampilhosa da Serra – campeã da fuga - e mais duzentos concelhos incluídos nos fugitivos para a beira-mar homens tão dedicados ao povoamento, não constariam da lista negra da desertificação nas regiões do interior.

 

SENTENÇA PROFERIDA EM 1487 NO PROCESSO CONTRA O PRIOR DE TRANCOSO

 (Autos arquivados na Torre do Tombo, Armário 5, Maço 7)


 "Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de:

 

- ter dormido com vinte e nove afilhadas e tendo delas noventa e sete filhas e trinta e sete filhos;

- de cinco irmãs teve dezoito filhas;

- de nove comadres trinta e oito filhos e dezoito filhas;

- de sete amas teve vinte e nove filhos e cinco filhas;

- de duas escravas teve vinte e um filhos e sete filhas;

- dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três filhas, da própria mãe teve dois filhos.

 

Total: duzentos e noventa e nove filhos, sendo duzentos e catorze do sexo feminino e oitenta e cinco do sexo masculino, tendo concebido em cinquenta e três mulheres".

 

 [agora vem o melhor:]

 "El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos dezassete dias do mês de Março de 1487, com o fundamento de ajudar a povoar aquela região da Beira Alta."

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:17
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Quarta-feira, 14 de Agosto de 2013

COMUNIDADE DE AVEIRO, 23 DE AGOSTO DE 2002 (I)

 

 

“Querida Rosinha e Manuel,

 

O telefone não chega para exprimir o que me vai na alma, no coração. É assim um conjunto de gratidão, ternura, um amor de família que desejaria caminhasse para a plenitude. Aí, sim, esse amor seria mais parecido com o amor do nosso Deus. Que ele me ajude a progredir na doação aos outros.

 

As horas que nos separam após a saída da Estação de Gouveia, estão cheias de recordações que aquecem o coração: o gosto, o cheiro das coisas boas que aí comi; o belo vinho que o Manuel teve a delicadeza de servir no último almoço, o gostinho, o cheirinho da farinheira torrada arranjada com aquele amor discreto da nossa Rosinha; o melão fresquinho, a calma, a alegria das Festas do Senhor do Calvário; a presença dos nossos queridos de Lisboa; a ternura de cada um e a dedicação da nossa Céuzinha naquela despedida que revelou o profundo do seu amor por cada um de nós. Tenho saudades de tudo, até do barulho dos saltos da nossa menina e da beleza das cores e harmonia como se vestia. É linda!

 

Recordo os nossos passeios à noite e as gargalhadas de cada uma. Recordo as idas ao café, a gente boa que encontrei, a qualidade das tuas amigas, Rosinha. Dá-lhes beijos meus.” (…)

 

(Continua amanhã o conteúdo desta carta de família encontrada com muitas outras numa secretária esquecida na casa principal da Beira Alta. Foi escrita pela tia Maria do Céu Brojo, religiosa na ordem francesa “Les Frères de La Charité”, num tempo vivido em Portugal em que o pai ainda estava entre nós e a saúde existia. Por testemunhar o espírito de família que desde sempre presenciei e procuro conservar, publico-a.)

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 09:59
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Sexta-feira, 4 de Janeiro de 2013

DICIONÁRIO PARA FALDAS DA ESTRELA

 

Abel Manta                                                                                          Clementina Manta, mulher de Abel Manta

 

Estando em curso preparativos para romagem a lugar nas faldas da Estrela, preciso é dicionário que desambigue com os locais discursos.

 

O falar da Beira Alta tem quês e porquês. Destes, especialistas sabem. Os quês são conhecidos daqueles que por lá vivem ou viveram ou se informaram. Algumas expressões populares deleitam pela expressividade ou humor, ainda que, nalguns casos, jocosas ou ofensivas. É de citar pêlo na venta ao querer exprimir mau génio ou frontalidade invulgar de quem perante desaforo não fechava a sanfona (boca). Pêlo na barba tem o sentido de mulher peluda no queixo. Aliás, barba é, na região, também sinónimo de queixo.

 

Gorgomilo, bofes, bucho significam, respetivamente, garganta, pulmões dos humanos ou do porco, estômago ou enchido feito de partes menores do bicho e enfiado na bexiga ou no estômago do mesmo. As mulheres encarregam-se do pitéu após a matança; atam e põem-no ao fumeiro para ser cozinhado ou consumido em fatias no Domingo Gordo – domingo de Entrudo, o último antes da Quaresma.

 

No cortelho, lugar reservado ao porco, a pia feita de pedra servia para conter o alimento que faria crescer o animal até Janeiro, mês em que ia desta para vida outra nas salgadeiras dos arcazes (arcas em castanho velho) arrecadados na loja (parte inferior da casa situada ao nível da rua). Pelo balcão subiam os moradores até ao espaço reservado para habitarem.

 

Almoço, fatia, jantar, ceia design(av)am refeições equivalentes e pela mesma ordem a pequeno-almoço, comida levada pelos donos da terra aos trabalhadores agrícolas entre as onze e meia e o meio-dia, almoço e jantar. Madrugar e dormir cedo eram hábitos indispensáveis a quem iniciava cedo a jorna. A ausência de televisão, de leituras, o frio entrado pelas frinchas dos telhados e das paredes em granito contribuíam para ir à deita mal a noite era descida. Filhos foram engendrados por falta de assunto ou pela quentura das cobertas (cobertores) que enganavam frio de arreganhar (arrepiar). Uns medraram (cresceram), outros morreram justificando a elevada taxa de mortalidade infantil antes e durante o Estado Novo. O ripanço (descanso) acontecia somente ao domingo quando ainda não era sonhada a semana-inglesa.

 

As matas e os milhos (milheirais) proporcionavam fugidios encontros românticos terminados em sexo. Rondada a futura amásia (amante) com rapapés (lisonjas) pelo candidato que lhe desejava o corpo, tudo acontecia num rufo (momento). Dando o povo conta, o passarinhar (andarilhar) dos amantes era vigiado por olhos curiosos, dizia o par amancebado e jamais esquecia o sucedido ainda que terminasse em casamento o romance. Galgas (mentiras) e nisgas (pedaços de nadas) de vaidade depressa alimentavam falatório e eram pretexto pra mandar pró catano (diabo) quem «argolava» comportamentos. Já bonda (chega)!, diziam. Também as malinas (doenças) de pessoas ou de videiras como a filoxera ou de pinheiros ou das batatas ou de outros produtos da terra que ajudavam à sobrevivência eram tema de conversa.

 

Das ovelhas, o leite para o requeijão e queijo serranos, o leite basto (leite coalhado com flor do cardo), os chibos (crias das ovelhas) eram petiscos, as mais das vezes oferecidos como paga de favores a famílias, médicos e profissionais dos serviços que as gentes auxiliassem. Lambarices (guloseimas) para lambareiros (glutões) que àqueles presentes chamavam ‘um figo'.

 

Enxaugar era e é perversão de enxaguar, rastolho tanto podia significar variedade de pêra como assuada (confusão, barulheira). Com nanja (nunca) enfático, perguntas eram caladas.

 

Mais haveria para referir se a tal chegasse o saber. Mas não chega. Já bonda!

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 11:24
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Sexta-feira, 3 de Fevereiro de 2012

MUROS E MUSGOS

Magritte reinventado, Richard Franklyn

 

-9ºC em Carrazeda de Anciães, -6ºC na Guarda, - 4ºC em Viseu. Na Europa, a vaga de frio vinda do Norte já matou para cima de duzentas pessoas. Só na Ucrânia, mais de 110, maioritariamente sem-abrigo encontrados sob a neve. E lembro, com gosto, os «pingentes» que na Beira Alta, tempo de férias no Inverno, enfeitavam muros e musgos. Os caminhos, feitos escorregas, para a miudagem fruir. E a garota deslizava; com luvas partia o rendilhado do gelo que debruava fronteiras. Ignorava o perigo nas estradas porque dela o gozo era a região fria, o divertimento, amigos outros que os interregnos entre períodos escolares permitiam rever. Era feliz. Corria o contentamento encapuçada pelas ordens matriarcas, gargalhava ao cair, mergulhava as botas na neve que lhe fazia a graça de cair. Quando o sol arribava, luziam montes, encostas, vales e o chão próximo. O azul despontava lá em cima muito antes da neve enegrecer pelos fumos do corrupio automóvel. E quando luto entristecia a alvura, avançava serra acima à cata da impoluta. Enterrava as pernas até delas mear a altura. Subvertia o desafio das recomendações. E ria e era menina/adolescente/jovem rica do que mais importa: liberdade.  

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

«Pra» aquecer: Fernando Botero. Nasceu em Medellín / Colômbia, no ano de 1932. Pintor, desenhista e escultor de grande originalidade. Conhecido pelas figuras obesas (a sua marca) onde retrata a família, o quotidiano, a vida burguesa, a cultura popular colombiana, animais, flores e personagens históricos. Estilo inconfundível, único, conquanto em Portugal um pintor o imite com enorme distância na qualidade.

 

publicado por Maria Brojo às 11:27
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Terça-feira, 13 de Setembro de 2011

À PORTA DO «TEM-TUDO»

Heriberto Cogollo, Eric Grohe

 

Oito e meia à porta do «tem-tudo» para construção. 'Café das velhas' tomado, vestimenta à trouxe-mouxe, do cabelo os múltiplos caracóis penteados com os dedos. Água gelada na espera das nove que a porta abrisse. Até às dez, foi um papar de buchas, torneiras, «bichas» macho e fêmea ou somente fêmeas, mais roscas e torneiras e autoclismo e lavatório e o mais que não lembro. Uma fadiga, não fora o fim último deixar daqui a meio ano bem contado num brinco casa inabitada da família.

 

Os mais queridos, salvo um, garantem que ensandeci pela troca de paredes e soalho cuidados em Lisboa por quimera capaz de me custar mundos e fundos, além da distância da urbanidade onde me têm por bicho certo no lugar próprio. Que, conhecendo-me a matriz pela aparência, laboram num erro carece de desmentido. Nem o TX lisboeta deixa de existir, nem existe impossibilidade geográfica de em três horas fechar a porta na Estrela e correr a fechadura do poleiro cerca do Campo Grande.

 

Acontece em horas frágeis indagar-me o porquê de reviravolta que pressinto de há muito, mas arribada suavemente à consciência em Junho após a limpeza obrigatória de terreno em socalcos na montanha. Terei, não juro, reflectido qualquer coisa semelhante a isto:

_ Anos em carreira, foi escavada cova nas quintas por onde foram escoados ribeiros de dinheirama. Vender amores de ancestrais está fora de causa _ Legarei o herdado, no pior, como foi recebido. No melhor, será alindado e volvida nova utilidade ao, até agora, sorvedouro na Beira Alta.

 

Dali até ao ‘mãos-à-obra’ foram semanas. Porfio na vontade dita quimera ou rebate inconsistente. Rosto erguido, percorro o meu outro caminho.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 18:38
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Terça-feira, 30 de Agosto de 2011

RETORNOS A FEITIÇOS

Estrela Faria, Abel Manta

 

Inverteram-se afectos - Lisboa de amor passou a amante, a Beira Alta de amor elevada a paixão. Complementam-se por amante e paixão serem formas lindas de expressar impulsos de ânimo. Não há paixão sem par amante, não há amor vero que dispense momentos de paixão. E distinguir entre sentires fortes que enrolam corpo e alma em rama fina de algodão é difícil pelas fronteiras próximas. Deixá-las entrecruzarem-se, oscilar entre uma e outra, alicia amanhãs. Não que a volatilidade dos afectos seja inferida, mas sim que de tão sérios e imprescindíveis simplesmente licenciam permutas de intensidade, mantendo, intocável, a fidelidade.

 

Nesta Lisboa, apetece descobrir mais e mais segredos que aumentem o pecúlio grato. Cidade mulher porque airosa, que joga ao ‘toque e foge’, enamora com recato para depois se abrir, despudorada, a quem dela e com verdade deseja fruir. E entrega-se e revela as colinas firmes, desce para o rio meneando ancas e nos requebros das pernas como se ainda soassem em fundo de música pregões das varinas. Deixá-la para um sempre é ingratidão à sua rara beleza nesta Europa vaidosa sem ter, todavia, onde cair morta. Porque quem ao belo se habitua tende a desvalorizá-lo, é preciso afastamento que cresça saudades e o reencontro por semanas ou meses torne em feitiço novo.

 

A Beira Alta é desafio que alicia urbana dos ‘sete costados’. Volver aos cheiros das urzes, dos pinheiros, da terra cavada, aos saltos dos ribeiros que o degelo engrossa, à proximidade da história lusitana em cada penedia, aldeia ou pelourinho, ao dia que pelo vagar possui mais do que duas dúzias de horas, seduz quem também por lá formou a matriz individual. Com os anos chegam desejos de paz mansa no exterior que permita às emoções a vivacidade de sempre, conquanto não interrompidas pelo correr sem fôlego nos dias.

 

Talvez em Lisboa falte o ‘bom dia’ do vizinho, talvez em Lisboa sobre cimento e torres onde gentes anónimas pernoitam após regresso extenuado a casa, talvez a oferta cultural seja tanta que entristece aquele que nem para o seleccionado consegue tempo, talvez em Lisboa os ciclos da Terra sejam menos pronunciados, talvez cada um esqueça demais quem é, talvez cada um lembre demais quem não foi. Talvez.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 07:23
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Domingo, 28 de Agosto de 2011

GLÓRIAS D’ANTANHO

 

Pisando solos conhecidos, as lembranças que pareciam arrumadas em arca de sólido castanho cerrada por ferragens caprichosas respiram pelas fendas. Com tanta insistência o fazem que num sopro mais forte deslizam as aldrabas. Escancarada a arca, saltam novelos de recordações à mistura com fotografias e postais e cartas e bordados e rendas em linhos que foram alvos e ferrugem maculou. Todavia, basta químico adequado e uma barrela para voltarem ao branco primordial. Assim fosse com o tempo que dizem tudo sarar. Mas não. Bastas vezes corrói, deixa nódoas difíceis de remover, arruína o outrora belo sem que falado seja o corpo. No espírito, sim, acontece o voar do tempo trazer ao de cima imperfeições que refinou. Como nas pessoas, nas sociedades nas casas. Deixando aos anos laborar por sua conta e jeito, corcovam os telhados, neles as fendas pela zanga dos ventos.

                                             

 

Deixando aos anos laborar por sua conta e jeito, corcovam os telhados, neles as rachas pela zanga dos ventos, alastram limos nas paredes de granito que a moda duma época cobriu – regressando os emigrantes com alguns dinheiros ajuntados remodelavam ou construíam casas fatalmente pintadas; quem ficara, talvez não desejando restar atrás, sobre as paredes de rocha derramava baldes de tinta. Deu no que deu, o mesmo é dizer «maisons» por todo o lado indiferenciando doutros os lugares serranos. Descaracterizados da personalidade de outrora, empobreceram. Não foram os picos da Estrela encimando o vale a demarcar geografia de encher o olho, os pobres sem meios para mudar o herdado, a pronúncia e o léxico local, julgar-se-ia Beira outra. Hoje, passado o negro período migratório e miserável pelas condições de vida amanhadas na «estranja», estão de volta os granitos exibidos com raça e graça. Deo Gratias!

 

 

 

Para quem na arquitectura procura estórias muitas perspectivas há de as ler. Janelas e janelos por exemplo. Quando debruadas as primeiras por pedra com recortes notificam dos haveres e gosto do dono pela obra a crescer. Da época de construção. Os janelos tinham serventia na iluminação natural de corredores ou esconsos sombrios afastados das visitas que aos espaços ‘de receber’ arribassem.

 

Fachadas, pouco antes, pouco depois de 1900 não costumam enganar. Esquadrias simples apenas com detalhe diferenciador. Dentro, portadas de madeira que da noite aliviassem temores e do sol o calor, as cores dos móveis e objectos.

 

 

Na Beira Alta, casa sem ‘loja’ não o era. Sem forro interior, rocha por aparar à vista, era cómodo para lenha, lagar, garrafeira, carpintaria, para tablados onde as batatas recolhidas de chão fértil esperavam mãos hábeis que na panela ou no forno delas fizessem pitéus. Ainda lusco-fusco, o trabalhador agrícola, almoçava: tigela de sopa, batatas com farinheira ou morcela ou ovo ou o que da «ceia» - jantar para os urbanos - tivesse sobrado. Sendo o labor nos lanifícios, o mesmo. Uns e outros precisavam de amanhecer com sustento para aguentarem costas curvadas pelo peso da enxada ou a jorna de pé frente a tear sem parança.

 

 

 

Ruínas há muitas por esse país fora. No concelho de Gouveia, talvez menos que o habitual. Recuperadas na maioria, restam algumas que apetece espreitar para mais tarde sonhar. É tentadora a fantasia, projecto quiçá, dos granitos destelhados fazer habitação que lustre a paisagem e o ambiente rural, segunda moradia para quem habita nas cidades grandes entupidas por tráfego que ao dia rouba horas de descanso ou primeira se o tentado se pode arrogar privilégio tamanho. Porque o é, diz quem a mudança experimentou e renasceu para a simplicidade original.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 07:31
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Sábado, 27 de Agosto de 2011

PÊLO NA VENTA E NA BARBA

Gustave Courbet

 

O falar da Beira Alta tem os seus quês e porquês. Destes, especialistas sabem. Os quês são conhecidos daqueles que por lá vivem ou viveram ou se informaram. São deleite algumas expressões populares pela expressividade ou humor, ainda que, nalguns casos, jocosas ou ofensivas. É de citar pêlo na venta ao querer exprimir mau génio ou frontalidade invulgar de quem perante desaforo não fechava a sanfona (boca). Pêlo na barba tem o sentido de mulher peluda no queixo. Aliás, barba é, na região, também sinónimo de queixo.

 

Gorgomilo, bofes, bucho são termos que significam, respectivamente, garganta, pulmões dos humanos ou do porco, estômago ou enchido feito de partes menores do porco e enfiado na bexiga ou no estômago do porco. As mulheres fazem este pitéu após a matança do porco, atam e põem-no ao fumeiro para ser cozinhado ou consumido em fatias no Domingo Gordo – domingo de Entrudo, o último antes da Quaresma.

No cortelho, lugar reservado ao porco, a pia feita de pedra servia para conter o alimento quer faria crescer o bicho até Janeiro, mês em que ia desta para vida outra nas salgadeiras dos arcazes (arcas em castanho velho) arrecadados na loja (parte inferior da casa situada ao nível da rua). Pelo balcão subiam os moradores até ao espaço reservado para habitarem.

 

Almoço, fatia, jantar, ceia designavam refeições equivalentes e pela mesma ordem a pequeno-almoço, comida levada pelos donos da terra aos trabalhadores agrícolas entre as onze e meia e o meio-dia, almoço e jantar. Madrugar e dormir cedo eram hábitos indispensáveis a quem iniciava cedo a jorna. A ausência de televisão, de leituras, o frio entrado pelas frinchas dos telhados e das paredes em granito contribuíam para ir à deita mal a noite era descida. Filhos muitos foram engendrados por falta de assunto ou pela quentura das cobertas (cobertores) que enganavam frio de arreganhar (arrepiar). Uns medraram (cresceram), outros morreram justificando a elevada taxa de mortalidade infantil antes e durante o Estado Novo. O ripanço (descanso) acontecia somente ao domingo quando ainda não era sonhado fim-de-semana à inglesa.

 

As matas e os milhos (milheirais) proporcionavam fugidios encontros românticos terminados em sexo. Rondada a futura amásia (amante) com rapapés (lisonjas) pelo candidato que lhe desejava o corpo, tudo acontecia num rufo (momento). Dando o povo conta, o passarinhar (andarilhar) dos amantes era vigiado por olhos curiosos, dizia o par amancebado e jamais esquecia o sucedido ainda que terminasse em casamento o romance. Galgas (mentiras) e nisgas (pedaços de nadas) de vaidade depressa alimentavam falatório e eram pretexto pra mandar pró catano (diabo) quem «argolava» comportamentos. _ Já bonda (chega)!, diziam. Também as malinas (doenças) de pessoas ou de videiras como a filoxera ou de pinheiros ou das batatas ou de outros produtos da terra que ajudavam à sobrevivência eram tema de conversa.

 

Das ovelhas, o leite para o requeijão e queijo serranos, o leite basto (leite coalhado com flor do cardo), os chibos (crias das ovelhas) eram pitéus, algumas vezes oferecidos a famílias, médicos e profissionais dos serviços que as gentes auxiliassem. Lambarices (guloseimas) para lambareiros (glutões) que àqueles presentes chamavam ‘um figo'.

 

Enxaugar era e é perversão de enxaguar, rastolho tanto podia significar variedade de pêra como assuada (confusão, barulheira). Com nanja (nunca) enfático, perguntas eram caladas.

 

Mais haveria pra apontar se a tal chegasse o saber. Mas não chega. Já bonda!

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 12:04
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Quinta-feira, 4 de Agosto de 2011

O SENHOR MÁRIO E A CUIDADORA-MOR

Lorie Merryman, Max Jacquiard

 

O Senhor Mário, cinquenta e três anos em corpo alto e ágil, bem apessoado, é jardineiro da Câmara. Terminado o horário estabelecido, é agricultor em propriedade extensa e alheia da qual recolhe lenha para a lareira, outros produtos do que existe, do que semeia e planta. Acumula com a tarefa de jardineiro da família proprietária do solo agrícola que cultiva, com a de cuidador doutra casa antiga, mesma pertença. Até este ano, era jardineiro segundo. A família promoveu-o a primeiro e único.

 

Porque de ano a ano os donos regressam à casa da Beira, conquanto na dúzia de meses menos um, abundem telefonemas, o Senhor Mário decidiu fazer contas anualmente. Hoje, após instantes pedidos, anuiu ao pagamento. Cinquenta euros, afirmou ser o total perguntando, de caminho, se eram aceites duas sacas de batatas e umas garrafas de azeite, tudo provindo da quinta por conta. Boquiaberta, a pagadora pôs-lhe na mão o dobro sentindo-se ainda em dívida. Reclamou que não, que era excessiva a quantia, Na partida rumo à Grande Alface, outro tanto lhe pagará sob pretexto que não tarda. Pela amizade antiga, o Sr. Mário e a “minha senhora” como gosta de chamar à mulher e companheira de muitos anos, fazem parte da família cujos haveres beirões zela.

 

Anteontem, acompanhou carpinteiro eficiente para tirar medidas a janelas, portas e portadas da casa aldeã há quinze anos desabitada. Gelos e estios extremados, mais a falta de uso, deterioraram irremediavelmente exteriores. O soalho feito de sólidas tábuas que forra jardim de Inverno, sala, escritório, ex-capela e a meia dúzia de quartos continua firme, bem como a escadaria para o andar de cima construída em madeira diferente. Urgência: barrela e cera abundante. Terreno em socalcos, sobe depois em pinhal entremeado por penedos. Os muros mais não são que pedaços de granito amontoados onde musgo habita. Vista deslumbrante sobre a montanha desde o lagar «na loja» até às águas-furtadas.

 

E a cuidadora-mor deleita-se a cada visita, franze o sobrolho perante o escândalo do orçamento apresentado pelo carpinteiro – poucos ‘Mários’ existem sobre a Terra e ainda bem ou a ruína do negócio pairaria –, sonha com permanência de meses não na casa principal, mas na que se propõe restaurar e foi, também, idílico cenário de férias na infância.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:23
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