Segunda-feira, 26 de Abril de 2010

ONDE SÃO FALADAS PEÚGAS E 'BOLICAOS'

Keith Garv

 

Há trinta e seis anos, passajavam-se. Hoje, vão direitas paro o lixo comum por não serem embalagem, nem papel, nem vidro. São compradas em pares múltiplos, descartáveis como luvas de látex. Peúgas rotas, ainda que buraco pouco, seguem para o caixote dos desperdícios e outras saem da gaveta.  

 

Há trinta e seis anos, sapatos com sola moída iam a remendo no sapateiro. Para evitar a despesa, colocados «protectores» metálicos que lhes prolongassem utilidade. Novos somente dois ou três pares por ano se estafados os anteriores e segundo o ciclo das estações. Hoje, adquirem-se sapatos como enfeites postos de lado mal a moda normaliza outros gostos/padrões

 

Há trinta e seis anos, mudando o peso corporal, volvia à costureira a roupa para apertar ou alargar – costuras largas na confecção preveniam alterações futuras do corpo, herança para irmãos mais novos ou para quem viesse a aproveitar o que não servia. Era o tempo do homem levar fato coçado ao alfaiate para trocar o lado exposto do tecido. De qualquer mulher saber fazer bainhas e casear. Hoje, basta tédio ocasional para mergulho no comprar como pílula da felicidade.

 

Há trinta e seis anos, não acabava o mês sem alguma poupança familiar à custa de parcimónia. Os livros escolares passavam do filho mais velho para o benjamim. Forrados com papel não se estragasse a capa. Industriadas as crianças para deles cuidarem.

 

Há trinta e seis anos, ganhava o planeta: muita energia economizada pelo hábito de ir a pé ou no transporte público e de conservar bens; pela alimentação saudável _ na lancheira da criançada, pão com manteiga ou fatia de queijo. Por inventar os bolicaos.

 

Passados trinta e seis anos, desfeita a euforia do desejo-quero-tenho, o porta-moedas furado dos cidadãos, o aumento das doenças cardiovasculares e outras que a sociedade fast e fútil tem acrescido obrigam a repensar hábitos. De novo, procurado o sapateiro e a costureira. Negar bens supérfluos tem, a cada dia, mais adeptos. Em vez de automóvel, palmilhar distância ou ultrapassá-la nos confortáveis meios públicos.

 

Passados trinta e seis anos em liberdade, começamos a saber usá-la. Ganha o planeta, ganham os portugueses.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 10:51
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