Quarta-feira, 27 de Novembro de 2013

«LAMBIDINHO» NA ESCRITA E NA PINTURA

 

  

Tracy – “Homework”                                                             Autor que não foi possível identificar – “Palette”

 

Era uma vez, uma menina descendente única em três gerações. Fosse pela falta de primos cerca dela com os quais partilhasse brincadeiras, outras engendrava para conjugar o verbo aprender. Começou a ler sozinha por falta de assunto, presumo. As ilustrações dos livros de estórias encantavam-na. Dedicou-se ao desenho e a manipular com destreza ingénua o carvão e lápis de cor. A escrita foi a brincadeira seguinte. Rabiscou cadernos e cadernos de linhas que intervalava com traços nos blocos de “papel cavalinho”. O afeto paternal havia de os arquivar. Hoje, conservo-os alinhados e protegidos honrando o amor que os legou.

À menina chegou muito cedo – aos cinco iniciara a “primária” – a obrigação de optar por rumo estudantil. As artes fascinavam-na; estarreceu os pais ao declarar o desejo de frequentar Belas Artes. “Que absurdo! Nem pense. Em Coimbra, tal escola não existe e ir para Lisboa ainda com dezassete anos aprender “desenho nu” está fora de questão.” E a menina foi exposta a testes de orientação profissional. Manteve-se ambiguidade – empate técnico entre letras, ciências e artes. Rebelde desde que se lembrava, aprendera que contrariar ostensivamente o clã familiar era luta inglória. Escolheu ciências, da matemática como jogo não prescindia, e continuou a desenhar nos cadernos de cada disciplina. Arrancava as folhas, e a manobra teria passado despercebida não ficassem os cadernos resumidos a poucas dezenas de páginas. Teve reprimendas. Numeradas as folhas. Insubmissa, mudou de estratégia: aberto por baixo do livro da disciplina estava o romance que na altura lia. Mais reprimendas. Castigos. Um deles: não ver televisão. Consequência: mais lia e desenhava.

Escolheu licenciatura por contexto partilhado com amigas de longa data: a Guida Catalão e a Teresa Almeida e Sousa. Nada que a estimulasse particularmente, salvo preservar quotidiano amigável. A surpresa viria depois: apaixonou-se pela Química e, mais tarde, pela profissão. Até hoje. Todavia, já mulher feita sente a falta de aprendizagens adequadas na escrita, em História, no desenho e na pintura. Tudo continua a fazer, a cada palavra, traço ou pincelada mais consciente da ignorância que não colmatou. 

“Voltar à escola” – ideia que congemina e tenciona concretizar na qualidade de aprendiz curiosa e empenhada. Não que o estudo diário esteja arredado do seu dia-a-dia de trabalho. Mas aprender o que sempre almejou é meta e vontade. Porque mesmo quando a profissão está garantida, o apetite por mais e diferente não é esquecido. Percebeu que com disciplina e entusiasmo é possível conciliar o impossível. Satisfazer quem é e quem deseja ser - preciso e precioso. Por isso arrisca escrever crónicas de cuja técnica pouco ou nada sabe. Por isso irá frequentar aulas de escrita e de pintura que a façam ultrapassar o vício do “lambidinho”. Por isso admira quem não desiste de empurrar o horizonte e volta à escola para infletir um rumo ou por mero prazer.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 09:36
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Domingo, 14 de Agosto de 2011

JOAQUIM MONTEIRO

 

 

O Sr. Joaquim Monteiro pastoreou rebanhos pela serra fora desde que se fez homem. Nos seus oitenta e tal anos, na banda de cá da Estrela, conheceu todas as pastagens, cantos e recantos, minas de água que dessedentassem os animais. Dias e noites sem volver a casa, pernoitas embrulhado no capote, em cama de chão. Aguentou frios e gelos de rachar ossos. Amanhecendo, recomeçava a lida de “guardador de rebanhos”, por vezes sentado num penedo, filosofando sobre o que via e acontecia, a vida, enfim. Não é acaso a sabedoria dos pastores e a tranquilidade proverbial.

 

 

Em casa da antiga vila, hoje cidade, habitavam os padrinhos de casamento, amigos e protectores do casal Monteiro, Joaquim e Maria da Luz. A herdeira da família madrinha neles pensava bebericando “café dos velhos” à sombra de latada e do muro onde heras subiam. Detinha-se caindo os olhos nos frutos da macieira e do pessegueiro amorosamente plantados e merecedores de mil cuidados pelo pai em sepultura próxima. As primeiras maçãs surgiram no Verão seguinte à partida da referência que sempre constituíra a figura paterna. Sorria ao ver a maravilha dos frutos coloridos, «via» o amor e o colo do pai correndo na seiva que os crescia.

 

 

Por vontade e obediência ao preceito “quem do seu cuida não merece castigo”, ergueu-se. Esquecida do «Cristo» em que tornaria pés, braços e pernas após o trabalho dos silvedos, enfiou vestido leve em vez de calças e botins velhos, seguiu “Estrada da Serra” acima até ao “Prado” onde prosseguia o restauro da casa. Enfiou-se por carreiros conhecidos desde as férias da infância – encurtavam o percurso e transbordavam beleza. A ondulação granítica da montanha sempre na dianteira, musgo seco pelo estio alapado nas rochas, em harmonia, espécies várias de arvoredo. Continuou a subida.

 

 

Já outra etapa iniciava rumo à quinta grande, quando casebre no limite do “Prado” a estacou. Então uma beldade daquelas para ali abandonada? Mirou de todos os lados a construção. Dela fez registo. Mais andarilhou até chegar à meta segunda. O Vale D. Pedro, misto de terreno urbanizável, agrícola, pinhal (bravo e alpino) intervalado por castanheiros e carvalhos, limpo de mato seco amigo de incêndios.

 

 

 

Durante a passeata, vislumbra o Senhor Joaquim Monteiro, alforge ao ombro, pastoreando nem meia dúzia de cabras. Como de costume, aproximaram-se, cumprimentos, o senhor baralhado nos laços de parentesco que ligavam a mulher aos padrinhos, se bem que havia dois meses no mesmo lugar se tinham encontrado. Confundia bisneta com neta, foi novamente explicado que não, que era a neta e ele na mesma teima. Passou às queixas usuais: que o Sr. Mário, o feitor, embirrava com as “pobres cabritas”, que o expulsara, que à propriedade não ligava. Além tinha ido na querela: ameaçara-o pôr veneno nas ervas e resolver o problema de vez morrendo os bichos.

_ A menina veja, matar-me as «bonitas»! Chamou-me “filho daquela” e eu não me fiquei chamando-lhe filho “dum aquele”. A partir da última vez, quando a menina lhe chamou a atenção, mais fui destratado. Que me morreu uma, é verdade.

_ Deixe lá Sr. Joaquim que sempre foi vontade da família vir para aqui quando quisesse. Uma vez prometido, para sempre cumprido.

Por lá ficou mais consolado.

 

Coincidindo o Sr. Mário e a mulher irem à casa para ser tratada com uma ‘infiltração’ a Fátima que penava com dores reumáticas no ombro e no cotovelo, houve conversa lateral:

_ Faz o favor de me explicar o acontecido com o senhor Joaquim?

_ É simples, minha senhora: deixou as cabras destruírem-me as sementeiras. Fiquei danado e disse-lho. Então aquilo fazia-se? O meu suor ali desbaratado?! Ameacei-o com pesticidas, mas nada fiz. A senhora conhece-me.

E a senhora que sim, que confiava nele por jamais ter dado motivos para o contrário, mas que tivesse paciência, embora marcasse regras. Saindo da saleta a Fátima com o braço ao peito e recomendação de repouso absoluto, foi o par à sua vida. A “minha senhora” voltou ao trabalho, fiada em ter apaziguado as partes.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:28
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