Após mais uma sessão da tertúlia “Vavadiando” promovida pelo Lauro António no Vá-Vá onde foram cruzados tempos e cruzam as avenidas Estados Unidos da América com a de Roma, fui desafiada pela pintora Graça Delgado para surpresa longe dali. Vínhamos com almas cheias pela história do lugar no final dos sessenta, na década de setenta, desfiada pelo Fernando Tordo. Descemos às catacumbas do metro. Até ao Cais do Sodré, extravasámos emoções e contos, risos muitos pelo que fôramos nos tempos lembrados.
Na zona para onde a moda da atual noite lisboeta se mudou, a surpresa. Estabelecimento esconso, balcão simbólico, mochos, poucos, como assentos, luz e palco diminutos. Neste, mesa de honra onde haviam tomado lugar os protagonistas: Miguel Real, autor do prefácio, o ilustrador, Manuel San-Payo — fora colega e amigo que perdera de vista -, o editor da obra apresentada. Cristina Carvalho, ao centro. Da escritora, jamais havia lido o quer que fosse. Somente ali, tive conhecimento da sua extensa obra literária, de ser filha de Rómulo de Carvalho, Homem com o qual convivi, pedagogo da ciência cujos saberes e livros me haviam iluminado o percurso na divulgação das ciências Física e Química. Senti-me em casa também pelo lugar despojado de ribaltas ociosas. No final, dança mistura de gerações reuniu desde crianças pequenas até adultos de idade meia – a grande idade rara ali. A boa seleção de música dos anos sessenta responsável pelo bailarico. Em lançamento, “Ana de Londres”. Anteriormente, fora conto no primeiro livro de Cristina Carvalho, “Até já não é Adeus: histórias perversas”, dado à estampa em 1989 e em 1996 publicado autonomamente. Pela valia histórico-social do conto, pela admirável escrita, ganhou alforria após revisto. Decisivo o empurrão dos leitores e de críticos remontados. Encanto suplementar neste livro há curtos meses reeditado: os pretos e brancos de Manuel San-Payo (quantas vezes presenciei a execução de mais pelo mesmo artista plástico!), responsável por um dos banners de eleição deste “Escrever é Triste” trazido pela «prima» Rita Roquette de Vasconcellos comentado com excelência por outra «prima», Eugénia Vasconcellos.
É em Lisboa que decorre a ação do livro escrita com linguagem precisa e preciosa. Localização temporal: final dos anos sessenta do século passado, mais rigorosamente em julho de sessenta e nove. Tempos difíceis pelo cinzento névoa e lutos que em permanência se abatiam sobre os portugueses. A guerra colonial, o ambiente pardo e castrador que engaiolava todos, jovens em particular, a revolta por tal, a fuga de tantos. João Filipe, namorado de Ana Maria, um de muitos. Nos ideais e decadente viver em Portugal, Ana encontra força para escapar de tamanha sem graça. Abandona família e amigos. Parte de Campo de Ourique para Londres. Das aventuras, das desfeitas no antes e depois, é narradora amiga de infância de Ana. Por ela sabemos o passado no momento em que a rapariga de dezoito anos comunica aos pais o decidido (…)
Nota: texto publicado hoje no "Escrever é Triste.
CAFÉ DA MANHÃ
Manuela Pinheiro - Casario
Texto esquecido
Para quem vem das Amoreiras e mergulha no bairro esquecido, cheiro a frango assado antecipa Campolide. De arquitetura pobre, comum em Portugal, a classe média que o recheava envelheceu e regrediu no pré mensal. Tempo recente, mudou, devagar, o retrato das gentes – é chique habitar nos clássicos bairros pobres da cidade. Tetos e janelas altas, escadas de madeira e corrimões atraem quem, de bom gosto, procura diferença d’antanho e pode de apartamento gasto fazer arte.
Com a patina do tempo – visão romântica da pintura descascada que a acidez da chuva sulcou de negro – o bairro laborioso tornou-se lar de terceira idade; apoio domiciliário substituído pelo comércio de vão de escada. O Sr. Zé, que vende frutas, legumes e básicos de sobrevivência, dá o alarme se contabiliza baixas nas visitas diárias. O mesmo com a Cidália que limpa as escadas de para cima de meia dúzia de prédios, ou a Dona Joaquina que, atrás do balcão, bem conhece os fregueses da leitaria herdada do defunto – “Mais valia tê-la vendido quando o «chinoca» quis comprar, mas que quer?, ensimesmou que gente daquela nem vê-la e olhe no que deu! Enfiou-me neste prisão. O enterro, que Deus o tenha, meio ano depois. De nada valeu a esquisitice porque o chinês abriu loja duas portas a seguir.”
Deslustra o bairro não ter marcha que arrebate troféu na dengosa Avenida em noite de Santo António. Merece olhar de esguelha pelo acesso direto ao humilde bairro da Liberdade prás bandas da Serafina. Falta-lhe o sortilégio do vizinho Campo de Ourique, cujo comércio a nata social (re)descobriu, ou o elitismo da Lapa. Não é uma das setes colinas engendradas pelo frade Nicolau de Oliveira à imitação de Roma - São Vicente, Santo André, Castelo, Santana, quinta S. Roque, Chagas e a sétima, a colina de Santa Catarina do Monte Sinai desdobrada em socalcos para o rio.
Bastando o bastante, em Campolide e desde o meio das manhãs, cheiro a frango assado anula «perfumes-de-sair» das poucas senhoras de sobrancelhas de lápis destacadas no pó-de-arroz.
Amoreiras e Campolide ainda extremam segmento de idiossincrasias duma cidade impiedosa no arrumo das classes sociais.
Nota: há instantes, publicado aqui.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros