O retrato começa aqui, a história não - somente no final surge e justifica a escolha do tema. Cauda farta, patas robustas.
O focinho é desvendado aos poucos. O porte também.
Após passeio matinal, o olhar de criança expetante seduz.
Chegado a casa, fica alerta, não se avizinhe intruso.
Pelas tranquilas redondezas, mergulha no sono dos inocentes.
Acordou em sobressalto. Talvez ruído suspeito. Talvez aproximação indevida que pressentiu. Da serenidade habitual, passou a lobo pronto a defender os donos. Na parede, tantos os saltos, a impressão digital.
E partiu à desfilada pela quinta fora. Tem hoje família que o protege e o considera parte dela. Longínqua a causa da adoção. Relatada a seguir.
História vera contada por um dos donos do Lenine
“Estavam os quatro amigos numa cêntrica pastelaria de Lisboa bebericando o café matinal e surge a proposta de um deles:
_ Hoje é dia de feira em S. Teotónio (Alentejo) e conheço lá uma velhota que faz a melhor sopa de grão do mundo. Vamos? Podemos pernoitar na pensão de um amigo na Zambujeira do Mar.
E aí vão eles.
Chegados, apresentam-se à ‘Ti Rosa’. Amesendam-se. A sopa era realmente divinal. Como soe acontecer por bandas aquelas, à sopa seguiu-se o queijo, o presunto o salpicão, et cetera e tal, sempre acolitados por bom vinho alentejano caseiro. Seguiram-se digestivos muitos. Bebedeira monumental. De tal ordem que acordei só e noite avançada sob a proteção duma azinheira próxima dum valado. O meu pé e tornozelo direitos tinham-se transformado em pata de elefante devido a queda da qual não tenho memória.
Pensei: tenho que caminhar até S. Teotónio e daí apanhar táxi para a Zambujeira para o merecido gelo no tornozelo e descanso. Fui-me arrastando até S. Teotónio. Mas táxi não havia.
_ Não há? Vou a pé.
Arrasto-me a muito custo e eis que surge da negrura um cão enorme que ao ver-me se foi chegando. E não é que o bicho começa a chorar? Continuo a arrastar-me e o fiel amigo à minha frente abrindo caminho. A cada bifurcação da estrada parava chorando até eu o alcançar. Escolhido por mim o caminho ajustado, lá ia ele à frente guiando. E assim chegámos à pensão do amigo na Zambujeira do Mar. Quis dar-lhe petiscos e festas. Debalde. Foi-se. Tinha cumprido a sua missão. Já não me lembro se chorei.”
CAFÉ DA MANHÃ
Graham McKean
Mal começado o dia que o sol ainda não ilumina, madrugada, portanto, cinco graus na rua, eles chegam. Caminham devagar. Enroscados nos abafos. Olhos no chão. Coluna inclinada às ordens do vento. Mais homens, que mulheres – elas arribam mais tarde, quase sempre com filhos pela mão. Encostam-se à parede e exorcizam o frio com o bater dos pés no chão, com as mãos nos bolsos ou enluvadas, com golas ao alto e o aconchego dum cachecol puído. Olham com ansiedade o relógio e permutam a informação de quanto falta para as oito. Falas poucas, que o desconforto é muito.
Clareado o dia com o avanço dos ponteiros, a língua desata-se. Histórias de maleitas, de sofrimentos, de vidas ingratas. Partilham, antes da abertura próxima, que técnicos, enfermeiros ou médicos entraram. Endireitam a fila desorganizada pela espera, pelo frio, pelo vento – alguns dos idosos que são maioria haviam-se recolhido no vão da entrada do condomínio fronteira. Outros, os mais afortunados que estacionaram em frente da porta do Centro de Saúde, aguardam no automóvel o ajeitar da fila até minutos antes de vir à porta o segurança. Homem possante, fardado como cumpre. A muitos conhece; quer saber como vai a mulher ou o marido. Mesmo que económico no sorrir, há solidariedade no estar. E conforta. Às oito, vai lá dentro: averigua se tudo está apto a receber os utentes. Entram, finalmente. Com eles, a vaga ilusão de regresso a casa mais esperançado do que fora a saída.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros