Terça-feira, 22 de Outubro de 2013

A METÁFORA DO HOMEM BÍBLICO

 

 

Julia Cuddlewell - Garden of Paradise      Anthony Christian - Bread and Wine

 

Três homens e uma mulher. Quadrilátero em que ela é diagonal e vértice. Por intervalos breves, na memória recuados, com dois deles partilhara lençóis protegidos e negrumes urbanos como reposteiros de veludo que a nudez e os sexos esconderam. Com o Miguel tecia palavras acoitadas no desejo incumprido. Pela adivinhação própria de amantes que antes de serem já eram, ela sabia-lhe o deleite solitário ao evocá-la. Ele dela supunha o mesmo. Engano – somente depois do beijo, ela anteciparia sabores outros a cuja cascata se renderia ou não.

 

Passada a mudança do ano, foi lavada a intimidade violeta e prata, mais as meias cinza-chumbo de liga extensa que a mini de pele da mesma cor uma vez ou outra revelara – a abertura lateral, pelo atrevimento, encantou a mulher e a quem o rasgo era dirigido. Dias depois, cada um dos três homens, relatou a última festa do ano. O João foi o primeiro. Comprara as lagostas costumadas na vigência do casamento findo. Antes da ceia solitária, vestiu o smoking como fizera enquanto “marido”. À mistura com riso triste, a amiga ouviu: “comi uma lagosta, congelei três. Mantive afastados corpos em que, pela descrença, durante o ano me disperso. Testei se o botão das calças do smoking não disparava como rolha de champanhe. Não disparou. Fiquei contente.”

 

O Rui disse: “esparguete e carne picada. Cidreira quente e água. Liszt, piano e orquestra numa quase valsa. O Irc como interlúdio e (des)esperança. Então, mesmo sem sono, a cama em geometria, sentiu o frio do lençol na nudez do corpo. Depois, e só então, dormiu.”

 

Do Miguel soube o gosto por vodka, os cigarros queimados e o omitido.  

 

Porque com o João – fêmeas como hobby e impulso - abordara a tristeza que, após o divórcio, lhe conhecia, ouviu: “fiel só o homem bíblico. Antes um amante promíscuo do que marido ressonando na cama. Elas preferem.” A mulher, para si, lembrou as orgias das carnes que fizeram Moisés subir à sarça ardente e destruíram Sodoma e Gomorra. Tolerante, cortou rente o “discordo”.

 

Entre desabafos, o Rui volveu ao tema. É infiel à namorada. Causa? _ Ausência de retribuição à altura do afeto dedicado, embora almeje razões para a fidelidade. Confirmou, sem saber, a metáfora do “homem bíblico”.

 

A propósito dos amores da vida dele, o Miguel contou à mulher: “Acredito na entrega única, total e absorvente. Tudo ou nada.”

 

Da amiga, mais velha uma década, ouviu contos de casais conhecidos. Eles com “outras” em Madrid, Bruxelas e Montijo. “Nem acompanhado pela mulher «certa» o homem se contém. Daí a graça e o desafio.” E quando uma mulher sábia aceita alegremente a infidelidade masculina, ela, diagonal e vértice, equiparou a trivialidade do Joao e do Rui à Aspirina. Entretanto, com o Miguel intervala ócios inocentes. 

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:53
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Quarta-feira, 14 de Dezembro de 2011

VIDES EM COROA

Teresa C., Blair

 

Tarde de Inverno. Após a poda, vides secas em molhos num anexo do jardim. Chuva e neve caíam vez, à vez. Por isso, o chão apenas branqueava curto tempo sem que arbustos, buxo, videiras, árvores retivessem alvura. Dentro, na lareira, ardiam troncos de pinho e castanheiro cortados no Vale D. Pedro durante Setembro. Como soía, desde o Verão, nos passeios e merendas na propriedade, munida de seira larga enchia-a com pinhas que, com os galhos secos ajuntados, por Dezembro fossem começo das chamas, depois, brasido aquecendo parte do casarão.

 

Nariz encostado à porta janela que dava para o jardim, olhei com pena as vides que o Sr. Mário dele cuidador, em breve, removeria para lugar incerto. Na conversa íntima que fluía com o pai ali bem cerca da fonte de calor - pelo dinamismo, recusava, então, a doença que o consumia – , verbalizei o pensado:

_ Algumas daquelas vides, as mais finas, tornadas em aro, poderiam ser base duma coroa de Natal.

 

O diálogo continuou na saleta entre pai e filha como sempre acontecia se a fortuna permitia estarem sós. Conversa sem parança, tantas eram as intimidades a partilhar. Elo forte a uni-los, aceso, sem necessidade doutro alimento que o amor mútuo e ‘aquele não sei quê’ mais intenso do que com outros amores familiares. Talvez por serem tão parecidos física e emocionalmente. Talvez pela tolerância mantida desde que a filha era catraia. Talvez, devido à profissão, pelos anos de afastamento obrigatório que o arrastava para longes e moíam saudades.

 

Porque havia afazeres, saí. À hora do jantar, o pai surgiu com a coroa de vides enformada por ráfia. Ri e beijei-o, qual criança encantada por brinquedo novo.

 

Desde que partiu, arrastam-se em luto seis anos prestes a completarem-se. Quando, há dias, ouvi gabar a coroa dependurada à porta, a mulher que apenas chora por injustiças ou mágoas profundas sentiu lágrimas correrem.  

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

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Quinta-feira, 23 de Junho de 2011

NO FUNDO, ALGODÃO PURO E FINO

Hilo Chen

 

Passado foi o primeiro dia do Verão. Celebremos o solstício hoje – praia ao Sul, extensa, vazia. Ostras ao almoço, limão e cama de gelo. A marina ali nas bordas do passadiço de madeira. O rio quase mar oscilando mastros e embarcações. E nós entremearemos risos e cumplicidades, degustaremos sentires e factos e sabores.

 

No baú dos biquínis, um, pelos recortes e cor, falará mais alto reclamando areia e mar e liberdade e espírito aliviado de escusas do nem vou nem venho. Será o escolhido. Conchas cuja vida íntima desapareceu, estrelas marinhas, seixos rolados, águas tépidas entreterão o caminhar sem que na sacola ao ombro conste turco para enxugo; dobrado, no fundo, algodão puro e fino que o corpo cobrirá na ida e na vinda, dois cigarros, isqueiro, telemóvel, óculos que filtrem luz excessiva. Precisões elementares de quem gosta de emergir da água salgada, evaporá-la enquanto enterra os pés na areia húmida e avança.

 

No final da tarde, corpo quente, pele dourada, regresso com serra em fundo. Talvez peregrinemos pelas vistas das subidas e declives. Talvez não, consoante a hora da fuga ao Sol adiada até o vento mandar. Não desistiremos da conversa, da partilha que constitui, das venturas singelas que alguns traduzem por somenos, da verdade líquida desembocada pelo rio no oceano.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:03
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Domingo, 16 de Janeiro de 2011

BEIJO DE MULATA

Mati Klarwein, Henry Lee Battle

 

Beijos sempre são. Confirmam amores, inauguram conhecimento pelo aflorar da face, uma atracção que do olhar foi além. Falam e contam de quem os partilha em mistura antecipada dos corpos e suas bocas. Crismam intimidades nascentes como acertadas ou equívocos e, dum modo ou doutro, concebem lembrança que num inesperado momento regressa. Talvez sorriso pintado de nostalgia acompanhe a volta do instante passado, a memória de veludo. Talvez o beijo convoque tristeza ácida se mágoas vieram depois. Mas, ainda assim, certo foi o começo iludido, a expectativa, o arrepio do novo, a fragrância desconhecida, a embriaguez que anulou o deslizar do tempo. Pode viver-se com muitas privações; sem beijos, não.

 

O Abelaira falava no Bosque Harmonioso de muitos beijos e bocas. Cristóvão Borralho por uma enfeitiçado haveria de, feito louco, ir de continente em continente para a reencontrar. Deu com ela, sim, muitos anos depois. A emoção da experiência prima veio intocada. Cessou a busca. Cumpriu o destino escolhido.

 

E se, como escreveu Gedeão, lágrima de preta está isenta de “… sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio.”, já a beijo de mulata encerra mistérios. Germina, selvagem, nalguns quintais de Moçambique. Floresce em rosa ou lilás. Dons medicinais caracterizam-na. Misturada com folhas e ervas seleccionadas, dá provas de combater eficazmente doenças oportunistas do HIV. Hábeis nesta farmacopeia tradicional, curandeiros sábios logram êxito onde a farmácia tradicional falha. Milagres do beijo de mulata que na região de Nampula acontecem.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 10:46
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Segunda-feira, 5 de Julho de 2010

QUE DIACHO!

Earl Moran, Joerg Warda

 

Olha quão esperta fui ao ter preferido ontem a casa e a cidade às praias e vias apinhadas que para elas encaminharam incautos ou desafortunados pelo horário nine to five! Mulher pode gostar de pele em bronze com brilho, mas, que diacho!, sofrer pela imagem não. É fácil negar penas escusadas quando há garantia de três a quatro coffee breakes semanais prolongados por uma hora no peregrinar ao Sol, vinte minutos para lá, outros tantos no regresso. Consciente da sorte, embora obrigada a dureza no trabalho à laia de compensação.

 

Nos dias úteis, Tamariz é lugar tranquilo. Nem feio, nem bonito, nem de elite, nem de massas, nem nada por aí além. Vantagens: comboio, estacionamento fácil, comiscar logo ali quando o apetite chega, quando é urgência dessedentar ou ir à «casinha». Remedeio para orientação diferente da minha bússola interior que tende apontar outros cardeais.

 

Ontem, pela quentura do dia, as praias, saber de ouvir dizer, abarrotaram. No Tamariz, confrontos, violência, larápios, polícia, very-lights ao (a)caso. António d’Orey Capucho rebelou-se. Acusou a polícia de vigilância medíocre. De se repartir igualmente entre Oeiras e Cascais cabendo a esta autarquia parte maior dos areais procurados se o trabalho semanal teve fim.

 

Quando um país desmorona a educação, desprestigia professores, disfarça o abandono escolar, oferece numa bandeja a conclusão do secundário, que pode esperar senão bandos juvenis ao Deus dará? O Deus de lá, do Tamariz, deve ter respeitado o Dia do Senhor, dele mesmo, para cochilar. Porque omnipresença é trabalhão sem horário e direito a horas extraordinárias pagas, quem se admira por falhas de zelo no cuidar da humanidade?

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 09:03
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Terça-feira, 1 de Junho de 2010

GASTAR ONDE É DEVIDO, SENHORES!

Carlos Diez

 

Aquecem os dias, as relações entre países no Médio Oriente e p’ra o lado das Coreias. Aquecem os preços com o IVA acrescido, ansiedades nas famílias, as praias concessionadas divididas entre segurança aquática, salários aos nadadores salvadores que recebem lentilhas por dez horas de contínua vigilância sem folgas. Para nós, época dita balnear, época de todos os riscos estando ondas pela frente e à beira delas população desinteressada ou ignorante das perigosas travessuras marítimas. “Nunca vire as costas ao mar” diz quem sabe. Houvesse um vigilante credenciado por família e mortes seriam evitadas. Hipótese que iria bem com a indisciplina lusitana. Atávica. Sarilho que desembocou no visto vivido e vívido.

 

Olhando de cima para baixo a costa portuguesa, malgré bandeiras azuis aumentadas, à medida do descer subtraído areal à disposição do banhista que arriba não protegido pelo resort ou pelo hotel da estada ou pelo aluguer do toldo ou do colmo. O cidadão comum afastado das zonas nobres vindo municiado com chapéu-de-sol para enfiar na areia. Longe do olhar exausto dos nadadores salvadores. Longe de educação para a segurança nas praias.

 

Quantas tragédias evitadas pelo respeito ao princípio de ‘se esturricou ao sol, não se enfie, directo, no mar’? Outro, basilar como o anterior:

_ Molhar os pés dispensa avanço para fundos ignotos se a arte de bem nadar não for competência.

Insisto:

_ Havendo crianças por conta, poças de água cavada pelas ondas, piscinas exigem olhar atento dos pais.

Declaro:

_ Educar para a segurança é urgente. Podemos estar na falência, mas a prevenção é indispensável. Spots nas rádios e televisões envolvem despesa meritória. Obrigatório: _ isenta de negociatas transaccionadas pela porta dos fundos como mandam os estrumes.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

 

publicado por Maria Brojo às 13:31
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Segunda-feira, 24 de Maio de 2010

COMBOIO FANTASMA

 

Robbie Bushe

 

“J. M.S. acha bem o TGV. Já que não há Feira Popular, pelo menos ficamos com um Comboio Fantasma entre Caia e o Poceirão.”

 

Li e reli. Ri depois. Não de soslaio, mas com bandeira desfraldada. Talvez fosse do sol espampanante, invasor dos olhos cerrados. Talvez fosse dos óculos de sol na cabeça e não protectores do suposto. Mal pus do avesso o peito ao astro maior, vi manchas. Amarelas. Prevenida, atentei. Compasso de espera. Os flashes persistiam. Comprimento de onda inusitado, frequência reduzida. Mas não. A retina persistiu e não descolou de su sitio.

 

Pelos desencontros das ondas subidas e descidas ao sabor da lua, das comunicadas por outras de ⋏ menor _ da rádio em particular _, das chaminés que debitam comentários e ideias e notícias outras, a mulher saboreava e ria. Bikini por lingerie que topo e algodão cobriam. Esplanada de restaurante marítimo. A mulher respirava alívio esquecido pelo trabalho contínuo. Quem assina Teresa C. com ânsia pelo segundo dia de Junho. Que espera a concretização do desejo de comentar quem a comenta e a reflecte sem pôr em causa tarefas prioritárias. Por horas, respirou. Por horas, serenou e esvaziou o saco das obrigações.

 

Ao lembrar o lido, a gargalhada foi aprovação e liberdade da mulher que ama comboios. TGV curto e nosso para quase nada, para empregar fundos comunitários sem garantir mais do que emprego precário, para lograr quem, como eu, espera tudo do tecido empresarial e da produtividade e da contenção. Ou o sol fruído estava em desoras, ou o (des)governo ensandeceu.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

 

 

publicado por Maria Brojo às 06:39
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Domingo, 20 de Dezembro de 2009

PROFISSÃO? _ DESEMPREGADO!

 

Raphael Perez

 

"A situação de desempregado institucional a que neste modernaço país parece estar condenado o idoso de mais de 35 anos, carinhosamente tratado pelo Estado por DLD (Desempregado de Longa Duração, tentando-se assim confundir se a longa duração diz respeito à pessoa ou à condição) é em tudo o contrário daquilo que deveria ser. E porquê? Porque toda a gente, de família a amigos, pensa inocentemente que é exactamente aquilo que devendo ser não o é. Numa palavra: tempo livre (nunca fui bom a matemática).

 

Explico-me: em que é que você, que está a fazer o esforço de ler esta breve (prometo) escritura até ao fim, pensa quando ouve a palavra Desempregado? Talvez me inveje um pouco, não? Porque eu tenho tempo livre para fazer o que quero. São 365 dias de férias por ano (de fazer inveja a qualquer sindicalista) e ainda recebo um subsídio de desemprego. Pois o problema é exactamente esse: o tempo que eu teria livre multiplicado pela quantidade de coisas, favores e outros horrores que me pedem – porque eu tenho Tempo – faz com que no final eu tenha sempre menos tempo livre do que todas as pessoas que têm um horário fixo de trabalho.

 

É o pai que “dava-me jeito que me desses boleia para ir deixar o carro na revisão”, é a mulher que “já agora vais tu às compras”, é o primo que “dás-me uma mãozinha a trazer as madeiras do Aki”, são os amigos que “tu é que tens tempo para dar uma ajuda nas mudanças”, é o editor que me avisa que quer a crónica “para hoje” (curiosamente não sei se ficará muito bem escrever isto numa “estreia”. O Senhor Director não leia esta parte, passe à frente). E eis que quando dou por mim tenho 4 coisas combinadas para o mesmo dia à mesma hora. Depois basta que falhe uma e “tás desempregado, não fazes nada e não se pode contar contigo para uma ajudinha”!

 

Dá-me tanto trabalho organizar o meu desemprego! E o pior é que nem subsídio de desemprego recebo. Não cobre DLD’s…"

 

Nota: texto publicado na Atlântico em Abril de 2007.
 

CAFÉ DA MANHÃ

 

 

publicado por Maria Brojo às 12:17
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