Alberto Pancorbo
Caridade. Caritativo. Caridadezinha. Caridoso. Compassivo. Esmoler. Dar um sorriso. Dar a mão. Dar o que não faz falta. Dar tempo. Dar para tudo ficar na mesma. O umbigo redondo e lustroso como antes. A derrota de quem recebe tão opressiva como ontem.
As boas acções, de caridade ou não, já foram obrigações diárias como o banho, lavar os dentes ou as mãos - dar moeda ao «pobrezinho», estender a mão à velhinha, deixar brincar connosco os filhos da empregada. Não havendo registado o dia candidato à bondade, era legitimada a troca por oração. Ajoelhada na cama - desde cedo recusei mortificar os joelhos no chão - debitava rezas mimadas com muitos «inhos» e «inhas», olhos em alvo e a pressa na voz (o livro esperava-me sob a almofada; pchiu...)
Dos produtos sazonais, a caridade é um deles. Mecenato, contribuição para acções sociais, tudo à mistura como PPRs e Contas Poupança Habitação. Descontam no IRS e dão para amealhar uns tostões. Merecida gratidão estatal pela nossa caridade só arribada pelo final do ano e a (des)prósito do Natal... Voluntariado e organizações arrebanham os sem-abrigo para bacalhau com couves e rabanada frita em óleo que já serviu a mais de mil. Os humilhados cedem, e vão, e engolem as batatas, debicam folha de couve, embrulham a rabanada num guardanapo de papel, arriscam caírem na óptica de prestimosa câmara de televisão vinda directa do chá fumegante organizado por «tias» com trapos griffés a leilão - Para os pobrezinhos, claro!, tão infelizes, «tadinhos»... E é o «máximo» ser útil, dar sentido ao vazio das próprias vidas que de outras, por via da engrenagem social, tudo sugou até não sobrar mais nada que a ceia caridosa mais a roupa da paróquia mais a ONG circulando pelas ruas onde a indiferença já foi desespero e agora é valida por caridade surripiada aos impostos. Se alguém «mo» leva que seja por uma boa causa! dizem almas esmoleres por via da fuga aos impostos. Ámen.
CAFÉ DA MANHÃ
Prado Conceição Ramos (colecção "Maternidades")
A confessa ‘menina da rádio’ tem a mania de escutar a TSF desde que a frequência lisboeta nasceu. Dá-me desgostos, olá se dá!, nomeadamente quando em viagem ou no interior português o sinal é desastroso. Mas, na procissão dos dias correntes, gratifica quem lhe segue as pegadas sonoras. E sigo. E ao entrar numa das casas minhas, bagagem recatada, a primeira coisa após o andarilhar de divisão em divisão, é abrir portadas, a segunda catar a sintonia desejada que encha o espaço de continuidade do lugar donde vim.
Ontem, ao ouvir o Pensamento Cruzado, reflecti-me nos dizeres. Tema: “A casa que há em nós”. A harmonia desejada entre o indivíduo e o interior das paredes que, ao cabo de jornada, o recolhem como ninho de paz. Retrato do ser que a casa constitui. A fala silenciosa que tão eloquente é – descreve os humores, períodos de instabilidade, de calma traduzidos no desarrumo ou no seu contrário. A companhia dos objectos, do recheio diverso que ao maestro do espaço confere aplauso da invisível orquestra que dirige. E os músicos ali estão, imóveis, possuindo a mestria necessária ao encanto do conforto doméstico.
Porque caseira me declaro, fruo de cada elemento da estrutura íntima da casa. Pela utilidade, não prescindo de um - a opção minimalista evita complicações nas limpezas e no olhar. Arriba-me à memória sugestão de pessoa mui querida: para num suspiro de empreiteiro, longo e imprevisível, é sabido, completar o restauro da casa do Prado, telhado, pintura interior e exterior, grades protectoras nas janelas nos baixios, portões novos, tábuas do chão afagadas, jardim ordenado, acrescento duma casa de banho e não mexer em reservas financeiras, vender 'apenas' um ou dois dos originais que forram paredes em Lisboa. Mas como, se fazem parte do que sou? Prefiro economizar, avanço comedido, que tesourar a alma.
CAFÉ DA MANHÃ
Sugestão de Veneno C. Sugestão de 'Cão Estrela da Manhã'
Bob Cole, autor que não foi possível identificar
Diz o poviléu, com razão, haver dias que melhor fora não sair da cama. Destes, cada um soma bastantes que recorda ou não conforme as historietas acontecidas. Não eu – esqueço os dissabores de modo a não entupir o baú da memória que prefiro cheio de lembranças boas. Porque recente, três dias atrás, registo dia fatídico. Acordada e mil projectos em frente, iniciei a manhã cumprindo um a um. Até ao dia meio, nada de extraordinário. A partir daí foi o caos: espelho retrovisor do lado esquerdo no chão avassalado por viatura descontrolada, fuga do condutor que a vinte metros vislumbrei mas que a (des)graça da miopia residual – protege-me da necessidade de lentes para o perto – impediu registo. Chegada à domesticidade, porta da arca do «combinado» decidiu preferir a cerâmica da cozinha a restar en su sitio como lhe cumpria. Liguei para a assistência técnica da AEG. Fui, prontamente, atendida. Dois técnicos, logótipos da marca escarrapachados nos blusões, olharam, remiraram e decidiram peça em falta. No dia, seguinte voltariam. Mas não. Cobraram trinta euros e nem papelucho oficial me lembrei de pedir, tantas as preocupações. Fiquei com o retrovisor e a porta da arca do «combinado» caídos. Cedo, não ocorressem mais desgraças, deitei-me procurando na leitura descanso. Qual quê?! Parcos minutos não eram passados, ouvi trambolhão. Antecipando o pior, não há duas sem três, averiguei o motivo do ruído. Arribada à cozinha, pé enfiado no aro dum cesto de verga enquanto a luz não surgiu, despenhara-se móvel de rodas contendo utensílios vários, condimentos, electrodomésticos pequenos, batatas, cebolas e alhos. Um esparramar jamais visto naquelas paredes. Resmoneei: _ Que se lixe! Amanhã, limpeza e arrumo. De regresso à cama, prossegui a leitura naquela: _ Se mais acontecer nas horas úteis de hoje, dou conta mas nem palha bulo.
Três dias depois. Os putativos técnicos da AEG, não o eram. Não encontro oficina, e se muitas contactei!, que me dê resposta em tempo útil ao arranjo do espelho exterior; encontrei o Vasil, bendito ucraniano duma AEG qualquer, que me dependurou a porta com eficácia e sem peça especial – dois parafusos bastaram. Arrumei os condimentos, batatas, cebolas, alhos e a restante parafernália de acessórios culinários. A esfregona mais a vassoura e a pá, manipuladas com precisão, fizeram o resto.
ADORMECI ASSIM CAFÉ DA MANHÃ
Perrin Sparks
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros