Charles Muench, Kollar Anderson
Sábado, 28 de Setembro
Não dormi quase nada. Mais uma daquelas noites que espero apagar da memória ao levantar-me. Na vigília, foi vívido o dia em que pressenti e o outro em que soube. Se no primeiro sorri, deslumbrada com o segredo que só eu guardava, no outro, um rubor delicioso e um orgulho único legitimaram a evidência: estava grávida.
Não sei porque recordo isto agora. Talvez por ser sábado e me sentir só. Já te confiei, meses atrás, todos os medos, receios e esperanças que envolvem o mistério pelo qual ansiava há muito. Dúvidas, tive, e uma certeza também: vou ter o melhor que a vida me pode dar. Nada rivaliza com esta riqueza que abrigo, nada poderá pô-la em causa ou toldá-la. Não vou deixar.
Gostaste da notícia. Primeiro, olhaste-me sem acreditar; ao assimilares a verdade estampada em desenho de felicidade no meu rosto, houve o beijo, a elevação no ar, a inquietude no dizer: «Sou um bruto, não devia!, Estás bem?, Desculpa!». Esvoaçaste em beijos, depois. Eras assim: sensível, meigo, o meu companheiro de anteontem; gostava que o fosses hoje.
Para ocupar a solidão vi cinema canalizado. Juntei à ansiedade o pressentido. Irracional, sei. Que saudade do ronronar comum em circunstâncias dantes!... O que tínhamos ia dando para bem mais do que pagar contas correntes. Que fazes longe, quando em casa és preciso, mais agora do que nunca? Dois meses de lonjura, em nove, é muito tempo. Demasiado para ambos. Demasiado para os três que somos. Não era o dinheiro que faltava. A mim faltas-me tu, ao que protejo falta-lhe saber-me afagada pelo pai.
Adormeci agitada. Ele, talvez por isso, não me deixou sossegar. «Vozes amigas» preveniram-me para não te deixar ir, para me obstinar na recusa. Não me atrevi a fazê-lo - deixei-te decidir livremente. Foste. O jogo do mais querer quando a ambição se instala, perverte. Avaliam-se mal os que julgam não serem corrompidos. Mas são. Mais do que merecem ou precisam. Como tu. Do que eu preciso ao teres decidido procurar longe de mim bem-estar aventureiro. Por isto não dormi, não durmo, renovo no dia os pesadelos da noite. Tens de regressar a tempo. Não apenas para assistir ao parto como dizes fazer 'qualquer homem que se preze' - 'homem que se preze' não deixa entregues a outros os tesouros que possui sabendo-os frágeis. Não esperes até nos olhos doutra, como nos meus ou nos teus restar, seco, o sal das lágrimas.
CAFÉ DA MANHÃ
Yannick Janet Hill
Sabes como encastelo emoções se dou folga ao filtro lógico. O raciocínio fica inábil. Então, espero respostas imediatas que nem sempre a vida ou tu, os outros ou tu estão dispostos a dar. Por que não podem, eles. Por que não podes, tu. Por que não queres. Por legitimares o silêncio, à primeira vista cómodo, dele ficas refém. E não gosto. Mudo de assunto sem que o essencial perca de vista. E diminuo num milésimo ou múltiplo dele o meu afeto por ti. Não o desejo. Não posso evitar.
Por esta altura, deixa-me aninhada no tapete da sala com um beijo e um blue. Sem que mo digas, faz um pudim de claras. Na cozinha, verás que ovos não faltam. Separa, os deuses te ajudem!, das gemas as claras de uma dúzia deles. Regula a velocidade da batedeira para o máximo e, sempre para o mesmo lado, bate até a brancura das claras ficar sólida como ponte que une amantes de corpo e espírito.
Ao ouvir-te barulhar, não me movo. Continuo enquistada na metafísica do que não entendo. Dei conta de ligares a 200 ºC o forno.
Estando as claras prontas, junta doze colheres de açúcar e volta a bater em velocidade média.
Pelo silêncio breve percebi não encontrares o caramelo que, sabes, guardo pronto. Abandonei o pensado e centrei-me no que fazias. Sem perguntares, viva!, encontraste o frasco de vidro com o caramelo dourado.
Adiciona um pouco do ouro líquido, o teu gosto manda porque o meu conheces: lambuzo-me com o aroma, a cor e a textura do açúcar caramelizado.
A doçura dos silêncios harmónicos encanta-me. Desses, temos. Dos outros, também. Dos que sabem a açúcar queimado quando a distração no tempo ao lume (...)
Nota: texto publicado na íntegra em http://www.escreveretriste.com/?p=59797
CAFÉ DA MANHÃ
Kathleen Scarboro
Seja pelas vidas esforçadas, por comodismo, ou ambição de mais e melhor para os filhos, os portugueses diminuíram a procriação. A manter-se a situação atual, Portugal perderá dois milhões e meio de habitantes em cinquenta anos. Uma em cada duas crianças nascidas em Portugal são filhas de emigrantes. Não fossem eles e o país teria atingido de forma mais abruta a contagem decrescente da população. No ano passado, nasceram dez mil crianças filhas de estrangeiros que neste retângulo marginal da Europa assentaram arraiais.
Nas escolas, é significativo o aumento de alunos com nacionalidade estrangeira. Os muçulmanos que frequentam a escolaridade básica e secundária, têm dificuldade na integração. Voz amiga reportou ter sido posto à prova numa turma que lecionou no ano letivo findo; estavam inscritas duas muçulmanas que não falavam qualquer língua exceto a dos pais e avós. Era suposto aprenderem a ciência exata onde estavam inscritas. Não faltaram a uma aula. Do início até ao fim do ano letivo, copiaram, durante os tempos letivos, o Corão. Em contrapartida, os ucranianos adaptam-se com facilidade à língua portuguesa e teimam na rápida aprendizagem tendo o dicionário sempre à mão. Brilham nas aulas e atingem o nível da excelência. Quando indagados sobre a razão, a resposta é, invariavelmente, a mesma: “aqui é exigido pouco comparado com o regime de rigor no desempenho que tínhamos no país natal.” Croatas e moldavos dizem o mesmo. Reluzem nas pautas que listam as classificações.
Os chineses inseridos na escolaridade portuguesa apresentam dificuldades em relação às turmas e ao português. Em contrapartida, deixam longe os demais alunos nas disciplinas de Matemática e Educação Física – não é exclusiva responsabilidade do governo Chinês o brilharete nos Jogos Olímpicos e na computação.
Quem são, afinal, os portugueses? A história testemunha o lusitano e ancestral apetite por descobrir e conhecer novos mundos. Imigrámos, miscigenámos outros povos e foi chegado o tempo de recebermos emigrantes que chegam idênticos na esperança aos portugueses fugidos à miséria e aos horizontes curtos dos anos sessenta e no dorido presente. Levantar o espectro da relação criminalidade/emigrante é fácil. Difícil é fundamentá-la com rigor. E quem, apreensivo, vê a chegada de estrangeiros e os julga destinados a trabalhos menores, esquece que na investigação científica, em trabalhos diferenciados técnica e culturalmente, nas artes, muitos são os que ocupam lugares de mérito.
É justificado receio não quando nos procuram, mas quando partem. Dados recentes confirmam esta tendência. Diminuídos fluxos migratórios para Portugal, é provada a recessão (opressão) da nossa economia. Nesta conjuntura do país, respeitar e acolher com dignidade emigrantes, é investir num futuro menos severo para todos nós.
CAFÉ DA MANHÃ
Abundância do tempo de afectos. Não em demasia, mas concentrados em alturas poucas no que à família alargada respeita. Fartote de embrulhos e laços e marcas e cartões e papeis brilhantes. A alegria/amor/soluto festivo mal diluído no ano. Sabe a de menos pela escassez quando era desejada frequência. A demais pelo cúmulo do calendário condensado em mês e meio.
No resto do ano, vezes muitas, são inventados, recriados, comemorados momentos particulares. Nem todos reunidos pelos afazeres ou pela distância. A alguns pesa a ditadura das coincidências. Rondando os oitenta, a fragilidade aumenta e talha o depois da abundância. Habituados à tranquilidade, o cansaço vence-os. Nos dias subsequentes aos empanturrados emocionais, escolhem o pijama e o roupão. Preenchem cada compartimento da caixa diária da medicação. Fazem partilha de memórias que sabe e faz bem a quem ouve e a deseja. E dormem. E lêem, olham, sem ver, televisão. E arribam lágrimas ao recordarem mimos recentes, amores cuja vida terminou. E discorrem sobre imagens de infâncias que ajudaram a zelar.
Aqueles, ontem crianças, hoje adultos novos, enchem de beijos e afagos quem ajudou a surgir pessoas boas da matéria-prima genética. Correm risos. Amor tanto é comum; porém, fosse a geografia benévola, maior frequência nas presenças daria pontapé na saudade castigadora e, com arte, melhor esculpiria o viver.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros