Daniel Del Orfano
Ligou ao Quarto Dia (História 3)
O vestido chegou, a bainha posta acima. Helena mudara de emprego, de maquilhagem e até o caminhar me parecia diferente. Há meses que notara alterações na minha mulher que iam de novos termos na linguagem até longos períodos de distração (ou concentração) tendo em comum o mesmo olhar vago e distante como quem vê através de mim. Sempre tão discreta no seu estilo requintado de apresentação, comprara recentemente um espampanante guarda-chuva vermelho em nada consentâneo com a sobriedade habitual do seu vestuário. O meu ciúme era por isso justificado e a angústia doía-me nos músculos. Amava-a.
Parker Pine, 17º andar, sala 12, Rockefeller Building East Side – Detective Privado.
Os serviços anunciados no jornal cheios de blá blá, prometiam atuação rápida e discreta a preços módicos. Acordada a estratégia, trocadas as informações, esperei na secreta esperança de estar errado; tal era o desejo de me sentir inundado de vergonha e remorsos pela recente contratação versus a eventual realidade que me aterrorizava.
Parker passou três dias simulando a leitura de um livro num banco situado à saída do novo emprego de Helena.
Ligou-me ao quarto dia; face ao meu olhar inquisitorial retorquiu sem subtilezas:
- Quer que lhe diga que não ou que lhe diga a verdade?
A foto cravou-se-me como punhal afiado: Helena abraçava ternamente um homem, caras tapadas pelo guarda-chuva vermelho. Ao lado, um táxi de porta aberta, esperava-os.
Mais de metade de mim morrera ali. O resto faleceu no divórcio.
Texto escrito por Emílio de Vera a quem agradeço a qualidade e a prontidão da resposta, bem como a seleção da segunda imagem de Daniel Del Orfano.
CAFÉ DA MANHÃ
Daniel Del Orfano
“Era Sábado e Ia Casar” (História 2)
Era Sábado e ia casar-me.
Lá fora, uma chuva miudinha fazia semicerrar os olhos; inclinei o guarda-chuva vermelho que Velda me deixara de véspera. Ajustei o cinto, sorri das superstições de Velda e fustiguei o passo.
Na esquina da 1ª Av. com a 53, Velda saltou do táxi e antecipou o beijo de esposa que ia ser; rosto sorridente emoldurado pelo cabelo louro ondulado e os mesmos olhos negros e vivos que via todas as manhãs quando me estendia o café.
Pedi ao taxista que nos deixasse na Lexington. Pelo retrovisor, reparei num Buick preto que nos seguiu até à alta de Manhattan. Joe de Magio tinha mandado os rapazes fazer o trabalho sujo. Naquele dia estava determinado a enviar-lhos de volta em sacos de plástico com um peixe fresco por cima, como na Sicília.
Recostada, com as longas pernas estiradas sobre o meu lado, Velda exibia as meias de seda até à renda; o vestido, vermelho e justo mal tapava o elástico da liga esquerda; das coxas brancas e fortes parecia emanar um cheiro quente a carne de mulher.
- Pare!
As rodas do carro chiaram quando o taxista guinou para estancar entre o Chevrolet e o camião de mudanças. Saí com a 45 Smith & Weston na mão por entre o fumo branco e negro da borracha queimada. Descarreguei o tambor no para-brisas do Buick ao mesmo tempo que o carregador linear de uma Bereta assobiava chumbo aos meus ouvidos.
E de repente, silêncio. Aquele silêncio de mau agouro que tantas vezes presenciara. Voltei-me para Velda, em pânico. Do canto esquerdo dos lábios, num trejeito ainda feliz, corria um espesso fio de sangue que descia pelo pescoço lívido e se perdia por entre os seios proeminentes, agora ruborescidos. Sem conseguir tirar os olhos dela, as lágrimas molharam o cigarro que acabara de acender.
Era Sábado e ia-me casar, mas as sirenes, ao fundo, evidenciavam-me que Velda continuaria lá, na cidade, nas sombras de Nova Iorque, com o seu guarda-chuva vermelho na minha memória para sempre.
Texto escrito por Emílio de Vera a quem agradeço a qualidade e a prontidão da resposta.
CAFÉ DA MANHÃ
Daniel Del Orfano Franz Richard Unterberger
"Em Veneza - assim sentiram os meus olhos" (História 1)
"Foi em Novembro que nos conhecemos.
Emília descia as escadas de San Giorgio Maggiore onde conflui o movimento dos que atravessam o Canal Grande para a Piazzetta San Marco. Sem lhe ver o rosto, coberto pelo guarda-chuva escarlate, cobicei os joelhos nus, magros e ossudos, como peças móveis de uma silhueta franzina, unindo como rótulas a gabardina às botas pretas.
-Prego signorina.
Emília agradeceu com o olhar o gesto de amparo no antebraço ao entrar na lancha agitada pela calema de uma manhã chuvosa do Adriático.
- Una piccola domanda; non sai che fare; non c'e` niente che io possa fare se ne e` andato via da qui à S. Maria Formosa.
- Si, certo, lei, compagno io.
A voz dela era forte e rouca mas em tom suave e meigo como murmúrio de riacho.
Aqui e ali reverberavam nas poças de água as descargas dos algerozes do Museu Correr.
A meio da longa arcada que circunda a praça, Emília divisou a única mesa livre que se apressou a tomar, dois dedos no ar, a indicar o número de capuchinos.
Fazer fé na reserva metálica da paixão que em semelhantes circunstâncias paralisa todas as capacidades apreciativas e provoca a admiração exclusiva da pessoa amada, era apelo irresistível. Porém, Emília era casada. Disse-mo a aliança resplandecente qual ave que quebra o silêncio com o seu grito.
Quando saímos, não dei pela falta do guarda-chuva. É mais o tempo que passamos ao serviço do guarda-chuva do que ele ao nosso. Não lamentava tê-lo deixado no bengaleiro do Caffé Florian; segurei, por isso, o dela para que me desse o braço.
No pedaço de céu retangular sobre as fachadas de ocre molhado, a chuva tinha-se distraído e um arco-íris espreguiçava-se em lenta curvatura.
Emília sorria, enigmática, na maquilhagem de paleta renascentista."
Texto escrito por JG a quem agradeço a qualidade e a prontidão na resposta.
CAFÉ DA MANHÃ
Pinturas de Franz Richard Unterberger (1838 - 1902)
História 1
Daniel Del Orfano
História 2
Daniel Del Orfano
História 3
Daniel Del Orfano
Três histórias, duas ou uma só que todas as imagens abranja. Nem uma palavra arrisco a indiciar rumo. Que a fantasia do leitor deslize e conte o conto que lhe aprouver.
A escrita é aceite sob pseudónimo e, depois, aqui publicada. É livre o título e a ilustração em pintura. Quanto gosto em constatar perceções diferentes da mesma sequência de imagens!
Endereço de contacto: mariabrojo@gmail.com
CAFÉ DA MANHÃ
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