Amy Yoes
Em 2010, abri as páginas de tom pérola editadas em formato acima do de bolso e capa rígida. Na segunda, em baixo, a frase de Virgílio Ferreira que tomara como minha pelo apreço ao título duma crónica escrita por Inês Pedrosa – “Da minha língua vê-se o mar”. Após essa, as outras páginas foram debulhadas com demora próxima da fruição dum enamoramento adivinhado, depois, certeza. Recordo a alvura do lugar feito de silêncio em que a paixão nasceu. Outras houve e perduram com idêntico começo: ao escolher um livro que arreda outros, experienciar alvoroço intenso e premonitório de inúmeros regressos às páginas com tal sortilégio.
É de amor a história de António Mega Ferreira que titulou “Lisboa Song”. Amor a uma cidade, amor a uma mulher estrangeira que pela mão do narrador descobre a novidade duma mancha urbana peculiar, quem a habita, quais as tradições e os costumes que a fazem respirar. Respiração nunca impositiva. Modesta, sim. Por isso, misteriosa, Por isto, encantatória.
A narrativa poética, as imagens recolhidas pela câmara de Amy Yoes não procuram o saudosismo duma Lisboa ‘para turista ver’ ou daquela outra que foi e já não é. Antes esmiuçam detalhes da contemporaneidade e da arquitetura duma capital onde miscelânea de gentes é olhada amorosamente. Nessa mole humana, os amantes descobrem-se com langor. O mesmo que transporta para a intimidade a lenta descoberta da cidade, lagarta branca ao sol como a descreveu Allain Tanner no filme “A Cidade Branca”. Neste, é um marinheiro suíço, Bruno Ganz, que, enfastiado da condição de embarcado numa “fábrica flutuante de gente louca”, aluga um quarto em Lisboa apaixonado pela solidão e pelo silêncio, pela brancura, brandura?, soalheira que invade frestas dos espaços, que é refletida nas ruas. No corpo de Rosa, Teresa Madruga, desenha cartas marítimas de amor.
Fascinam em “Lisboa Song” o relato das feridas da cidade, saradas ou não, a alma dos materiais e seu parecer, os signos dos tempos idos que o terramoto selou, o baile da luz e das sombras projetadas por telhados e esquinas em vielas esconsas. Na fala/dança erótica entre os amantes, memórias para que a cidade remete – a presença de Scarlatti em vinte ou vinte e um do século dezoito com a finalidade de ensinar música a Dona Maria Bárbara de Bragança, a mitologia de Ulisses.
“ (…) Perguntei-lhe, e depois?, ele fechou os olhos, voltou-se para mim, disse, não há depois, nunca houve depois na vida de Scarlatti, apenas uma frase na margem de um manuscrito, vivi felice, percebes?, é absurdo pensar que este homem sem biografia, entregue aos pequenos arranjos domésticos da sua sobrevivência, tenha podido legar à posteridade uma proposição tão obscena, vivi felice, sejam felizes, como se fosse a coisa mais simples do mundo, e ouve-lhe a música, não vês como até parece verdade? (...) ”
“Então ela disse: a cidade é dividida a meio pela memória de um cataclismo. Há cidades atravessadas por rios, as cidades inglesas definem-se pela linha do caminho-de-ferro, há canais por dentro de Veneza. Todas as cidades antigas são assim, fragmentadas, descontínuas. Mas esta cidade, insistiu, o que a define é uma memória. A memória da catástrofe. O Deus dos católicos não é infinitamente piedoso, a nas ser nas suas preces, acrescentou. Mas na cidade também não têm por ele uma consideração excessiva. Acreditam na Fé mas não a praticam. (…)”
António Mega Ferreira in “Lisboa Song”
CAFÉ DA MANHÃ
Amy Yoes
Em 2010, abri as páginas de tom pérola editadas em formato acima do de bolso e capa rígida. Na segunda, em baixo, a frase de Virgílio Ferreira que há muito tomara como minha pelo apreço ao título duma crónica escrita por Inês Pedrosa – “Da minha língua vê-se o mar”. Após essa, as outras páginas foram debulhadas com demora próxima da fruição dum enamoramento adivinhado, depois, certeza. Recordo a alvura do lugar feito de silêncio em que a paixão nasceu. Outras houve e perduram com idêntico começo: ao escolher um livro que arreda doutros, experimentar alvoroço intenso e premonitório de inúmeros regressos às páginas com tal sortilégio.
É de amor a história de António Mega Ferreira que titulou “Lisboa Song”. Amor a uma cidade, amor a uma mulher estrangeira que pela mão do narrador descobre a novidade duma mancha urbana peculiar, quem a habita, quais as tradições e os costumes que a fazem respirar. Respiração nunca impositiva. Modesta, sim. Por isso, misteriosa. Por isto, encantatória.
A narrativa poética, as imagens recolhidas pela câmara de Amy Yoes não procuram o saudosismo duma Lisboa 'para turista ver' ou daquela outra que foi e já não é. Antes esmiuçam detalhes da contemporaneidade e da arquitetura duma capital onde a miscelânea de gentes é olhada amorosamente. Nessa mole humana, os amantes descobrem-se com langor. O mesmo que transporta para a intimidade a lenta descoberta da cidade, lagarta branca ao sol como a descreveu Allain Tanner no filme “A Cidade Branca”. Neste, é um marinheiro suíço, Bruno Ganz, que, enfastiado da condição de embarcado numa “fábrica flutuante de gente louca”, aluga um quarto em Lisboa apaixonado pela solidão e pelo silêncio, pela brancura, brandura?, soalheira que invade frestas dos espaços, que é refletida nas ruas. No corpo de Rosa, Teresa Madruga, desenha cartas marítimas de amor.
Amy Yoes
Fascinam em “Lisboa Song” o relato das feridas da cidade, saradas ou não, a alma dos materiais e seu parecer, os signos dos tempos idos que o terramoto selou, o baile da luz e das sombras projetadas por telhados e esquinas em vielas esconsas. Na fala/dança erótica entre os amantes, memórias para que a cidade remete – a presença de Scarlatti em vinte ou vinte e um do século dezoito com a finalidade de ensinar música a Dona Maria Bárbara de Bragança, a mitologia de Ulisses.
“ (…) Perguntei-lhe, e depois?, ele fechou os olhos, voltou-se para mim, disse, não há depois, nunca houve depois na vida de Scarlatti, apenas uma frase na margem de um manuscrito, vivi felice, percebes?, é absurdo pensar que este homem sem biografia, entregue aos pequenos arranjos domésticos da sua sobrevivência, tenha podido legar à posteridade uma proposição tão obscena, vivi felice, sejam felizes, como se fosse a coisa mais simples do mundo, e ouve-lhe a música, não vês como até parece verdade? (...) ”
(...)
António Mega Ferreira in “Lisboa Song”
Nota: texto publicado hoje no "Está Escrito".
CAFÉ DA MANHÃ
A segunda sequência de imagens pertence ao filme "Dans la Ville Blanche" de Tanner.
Alexandra Prieto
Reli, treli - outros prefixos quantitativos descreveriam melhor o número de visitas às páginas encantadas – uma história de amor do António Mega Ferreira que titulou “Lisboa Song”. Amor a uma cidade, amor a uma mulher estrangeira que pela mão do narrador descobre mancha urbana, seus habitantes, suas tradições e costumes.
A prosa poética, as imagens recolhidas pela câmara de Amy Yoes não procuram o saudosismo duma Lisboa para turista ver ou daquela outra que foi e já não é. Antes esmiuçam detalhes da vida contemporânea e da arquitetura duma capital onde miscelânea de gentes é olhada amorosamente. Nessa mole humana, os amantes descobrem-se com langor. O mesmo que transporta para a intimidade a lenta descoberta da cidade/lagarta branca ao sol como a descreveu Allain Tanner no filme “A Cidade Branca”. Nele, é um marinheiro suíço, Bruno Ganz, que, farto da condição de embarcado numa “fábrica flutuante de gente louca” aluga um quarto em Lisboa apaixonado pela solidão e pelo silêncio que nela experimenta, pela brancura soalheira que entra através da janela e nas ruas. No corpo de Rosa, Teresa Madruga, desenha cartas marítimas de amor.
Fascinam em “Lisboa Song” as cicatrizes, texturas, a coreografia das esquinas feita de luz e sombras, os símbolos que remetem para linhagens várias: o terramoto, a memória de Ulisses, os ecos de Scarlatti.
“Então ela disse: a cidade é dividida a meio pela memória de um cataclismo. Há cidades atravessadas por rios, as cidades inglesas definem-se pela linha do caminho-de-ferro, há canais por dentro de Veneza. Todas as cidades antigas são assim, fragmentadas, descontínuas. Mas esta cidade, insistiu, o que a define é uma memória. A memória da catástrofe. O Deus dos católicos não é infinitamente piedoso, a nas ser nas suas preces, acrescentou. Mas na cidade também não têm por ele uma consideração excessiva. Acreditam na Fé mas não a praticam. (…)”
António Mega Ferreira in “Lisboa Song”
CAFÉ DA MANHÃ
Colleen Ross
Vi sítio lindo. Antes, fora o recolher do automóvel da garagem onde pernoitara semana e meia para arranjo. Ao trazerem-mo, luzia e pouco tinha a ver com a lata podre ali chegada, conquanto, etariamente, infante do básico. De tão bonito, quase tive receio de rodar o volante. Por saber-me distraída e consciente da péssima condutora que sou – nada me detém sendo pressa e a cavaqueira com o(a) pendura a mandarem – avancei lenta e cuidadosa. Inusitada maneira de progredir no alcatrão para quem me conhece os vícios se dirijo um motor...
Voltando ao lugar conventual onde cerâmicas e lioz e arcadas e arcos em tijoleira emoldurando janelas do século XIV coabitam com fibras óticas após irrepreensíveis restauros. Lugar a que acedem funcionários de serviço estatal. Além dalgumas, escassas, pousadas, especulo que na amada Lisboa – a “Cidade Branca” do Tanner, a lagarta reluzente esparramada ao sol – e no país, poucos coios semelhantes existem. Ter fruído deste encheu-me o olhar com beleza.
Almoço? _ Partilhado! Iscas e sardinhada numa tasca encantadora «mai’la» companhia.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros