David R. Darrow
De tão bela mereceu alcunha: Emília Bonita. Rapariga viçosa, morena na pele e no cabelo sedoso. Para estudos além da quarta classe era curto o dinheiro dos pais. Duma fábrica têxtil na vila próxima, não escapou - antes isso que pés descalços enterrados na terra para a ceifa, apanha das batatas a troco de quase nada. Pela madrugada, dois quilómetros a pé se era de dia o turno. Sendo Inverno, neve e frio eram açoites. Aos poucos, cortavam rente a esperança de vida melhor. O passo era corrido, não ouvisse a sirene da fábrica antes de nela entrar. Acontecesse chuva torrencial e chegada mais tardia do que o hábito, em falta tempo para aquecer junto às brasas incandescentes; a roupa encharcada secava no corpo e os pés nos botins de gelo.
Patrões, empregados de escritório, debuxadores, responsáveis do fio, tecelões de primeira, segunda e terceira. Urdideiras e caneleiras. Masculinas as tarefas superiores ou criativas; às operárias esperava-as a repetição dos gestos que não carecessem de raciocínio. Suportadas as horas de trabalho sem limite definido, e, após a dureza do caminho de regresso, outros encargos esperavam: a lida da casa, os filhos para tratar, dar de comer às galinhas e ao porco. Os homens iam diretos para o cultivo do campo donde recolhiam alimentos de sobrevivência. A noite curta mal dava para aliviar os ossos da crueldade dos dias.
A Emília Bonita, como a Lurdes do Zé Cunha - rapariga loura, pele branca de cetim - e tantas outras como estas, pelos dezasseis anos, sofriam rito iniciático no mundo operário. Patrões experimentavam-lhes o corpo após a máquina que as prendia delas ter sentido os dedos. Assédio sexual prolongado não havia - iam direitos ao assunto sem mais. Elas perdiam a virgindade, cerravam os dentes e fechavam a boca após a agressão pelo temor do despedimento. Um momento de dor e mais nada, julgavam, por ser ato comum e sabido antes da entrada. Gostando da «primeira vez» (...)
Nota: texto publicado na íntegra aqui.
CAFÉ DA MANHÃ
David R. Darrow
Assim fora, assim nunca seria. Ela, que sempre e nunca rejeitava, usava-os vezes demais. A incoerência reclamada como defesa e arma para advires etéreos. Não conjugava futuros. Ou conjugava pelo gozo da negação seguida. Sabia da pequena esfera recolhida junto ao nervo/comando da visão. Talvez morte, talvez vida. Esquecia-a. Lembrava-a se entretinha a tentação do prever. Ceifava-a como na infância vira nas terras fecundas pela natureza e regas. Montanha ao alto, vale em música de cantares/alívios de corpos doridos. Os lobos à espreita, as raposas rapinando poedeiras que supriam faltas míseras. Recontos aconchegados nos colos das matriarcas, foram. A menina, ao tempo, das labaredas conhecia as das lareiras confinadas à pedra, castanho velho por remate. Já não assistia às queimadas nos campos nus onde o Outono descia manto de cinza fria. A urbe, do centro capital, era dez meses de existir, escola, liceu, faculdade. Na geometria parental, a criança era o terceiro vértice. Vazio outro que desejava ocupado por laço fraterno. Sem ele, ficava a menina debulhando leituras e, pelo carvão, no «cavalinho» registando falhas e fantasias. O quarto de brincar, excessivo, recolhia a criança só. Sem primos na rua de baixo ou de cima ou na cidade que pelos afetos e birras habitassem a irmandade possível. E lembrava da casa beirã o baloiço pendurado no braço robusto da nogueira velha e formosa. O teto de folhagem e frutos verdes. O vaivém que, nas férias serranas, o primo de Lisboa arrojava rápido e alto.
_ Voa! Voava. Sem medo. No Jorge constelava universo de confiança. Como no pai, cúmplice e autoridade. Como no tio franciscano. Como no avô que musicava os dias em pautas de alegria, primeiro nos acordes da viola afagada na tarde quase extinta. E havia fogo e turquesa no recorte do vale descido da Estrela até ao Buçaco que os malvas dissolviam.
Dos homens e mulheres entendeu o que via entre paredes de amor. Eles laboriosos, providentes e previdentes, ternos, base e fundo da confiança. Elas companheiras, voluntariosas, pondo e dispondo com autonomia sob o tule do véu que levavam à missa de incensos e altares de tranquilidades floridas. Só na aparência submissas. De facto, senhoras donas da família.
Da crisálida no seu casulo, houve mulher com criança dentro. Porque da dormência das sestas adultas, na infância, constituíra reinos e da precária liberdade experimentara a magia, aprendeu a deter-se. No silêncio, jogar ao ‘faz de conta’. Uma e outra e outra figura. Personagens múltiplas que viria a integrar enquanto despia e vestia sedas da mãe copiando gestos de filmes antigos que o preto e branco coloria. Desequilibrada nos saltos, encenava graça e langor no palco que o espelho devolvia. A sedução da mãe, das mulheres de Hollywood repetidas no descalçar da meia e na alça caída do ombro por suave estremecer. Um dia, sua. Egoísta pela relevância do querer, houvesse ou não quarto cheio de homem que a visse.
Nota: há pouco, texto publicado aqui.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros