Quarta-feira, 17 de Agosto de 2011

EM 1946, MARIA E SARIO

Donato Giancola e autor que não foi possível identificar

 

No concelho de Gouveia, como noutros das Beiras, década de quarenta e par das seguintes, acabada a instrução primária dos afortunados que ‘iam à escola’, as crianças ajudavam ao sustento da família por mor da pobreza extrema. Iniciadas na lavoura, na pastorícia, na lida da casa, na costura, carregavam cântaros de água sobre as cabecitas, alimentavam o porco e bichos de capoeira, do ferro de brasas sabiam o manejo na arte de engomar. Calejavam os pés andando descalças ou, arribado o frio, com sorte, talvez protegidos por tamancos e peúgas saídas de mãos laboriosas no tricô.

 

Porque Gouveia era centro importante no fabrico e exportação de lanifícios, quem podia trabalhava nas fábricas. Frequente, ‘meter pedido’ para conseguir admissão e combinar fábrica com agricultura de subsistência ou jorna ao serviço doutrem. Na indústria fabril, o trabalho era por turnos. Aos dez anos, fizesse neve ou sol, pela madrugada, saíam das camas ou do que dela fizesse as vezes para fazer a marmita e andarem quilómetros – pegavam às oito. No final do dia, a paga era dezena de tostões. Se no Inverno percorrer a distância era sofrimento indizível pelo frio de navalha da montanha, mãos e pés atiçados por frieiras, na fábrica continuava o Inferno: barulho ensurdecedor, homens negros pelos óleos, correias espalhadas, catraios empoleirados em bancos, não chegando aos teares. Ao meio-dia, estrondeava apito para o intervalo da bucha/almoço comida dentro da fábrica, em redor de bidons onde ardia lenha que (mal) disfarçava o gelo nos ossos.

 

Em 1946, na “Belino”, é iniciada paragem laboral – finalmente, acontecia greve devida às desumanas condições de trabalho e aos magros salários. “Nas Amarantes”, uma das fábricas mais importantes do país com setecentos trabalhadores, o mesmo. Mal passada era uma hora, a GNR cerca as unidades fabris, empurram para dentro dos jipes e prendem cerca duma quinzena de homens julgados cabecilhas. O pai da menina que com o filho do sacristão escondera os coxins dos prie-dieu na igreja das Aldeias trabalhava na “Sociedade Industrial”, comummente designada por “Amarantes”.

 

Estando no colégio a já adolescente, ouve contar o que acontecia. Juntamente com o Sario cujo pai era operário na mesma fábrica saem desvairados das aulas e, numa corrida, alcançam a praça de S. Pedro onde guardas, jipes com os presos e multidão se haviam ajuntado. Espreitavam os detidos temendo encontrarem os pais. Saberiam, então, que eles permaneciam dentro da fábrica - ao primeiro, um dos fundadores do sindicato na região que, de pronto, se identificou com a luta, salvara-o a ascendência familiar, isto descobriria mais tarde, ao segundo, a óbvia inocência.

 

Mais tranquilos, correram de volta ao colégio. À entrada, dão com o director que os esperava. Apopléctico de fúria, aos brados indaga porquê o desplante de faltarem a uma aula. O Sario adianta-se e explica a angústia que haviam passado. Sem delongas, o director dá sonora bofetada ao rapaz com dezasseis anos. A Maria, ferida pela incompreensão e violência, questiona-o:

_ “Porque não me bate também? Por ser mulher e sobrinha dum padre?”

 

Durante quinze dias, as fábricas mantiveram portas cerradas enquanto os patrões reuniam e ruminavam procedimentos. Aos poucos, chamaram operários. Admitidos os imprescindíveis pela função especializada e os considerados rebanho cordato.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 09:53
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