Segunda-feira, 7 de Janeiro de 2013

É DO FEIO O TRATADO

Cruzeiro Seixas

 

Do Feio, reza a história das artes e da filosofia. Desconheço se Savinien de Cyrano possuía a disformidade inspiradora da peça de Rostand. Fatos são Savinien ter acrescentado ao nome “de Bergerac” e estarem os seus despojos corpóreos sitos no Cemitério do Père-Lachaise.

 

Ragueneau, personagem da peça, improvisa:

“Pintor algum jamais desenhará

perfil semelhante ao de Bergerac;

mais bizarro, excessivo, extravagante,

grotesco, caricato e petulante!

Penacho no chapéu, capa e espada,

corajoso não perde uma estocada!

Fingindo um rabo-de-galo insolente

empina-se e enfrenta todos o Valente!

Exímio espadachim, consigo porta

uma crista esquisita, rubra, torta...

Um nariz! Mas que penca gigantesca,

feia, disforme, polichinelesca!

Todos que vêem um narigudo tal

pensam: Ah Meu Deus, que hipérbole nasal!

Não seria melhor tirá-lo? Engano!

Jamais o tira o intrépido Cyrano!”

 

Mário Eloy

 

Aristóteles distinguia o Belo e o seu oposto: o primeiro como um indicador de virtude, o Feio como o mal e o seu sinal. Os conceitos primários de hoje quase cópia daqueles. O Feio domina aparições dum real feito de sombras e de medos. Associado ao cómico e ao obsceno. À dor. À doença. À fome. À guerra. À exclusão. "É considerado feio o rosto dos excluídos, o trabalhador rural, as mãos embrutecidas do operário. É preciso uma estética de libertação a partir dos oprimidos, que são a maioria da população que não se encaixa nos padrões de beleza", li por aí. E negamos o desagradável. Afirmamos, socialmente, não existirem pessoas feias, idiotas ou malvadas. Mas não existindo o pouco inteligente o feio e o malvado, como haver o superdotado, o belo e o bondoso? 

 

Eduardo Batarda - Cena Canalha

 

Beauty is in the eye of the beholder”, lugar-comum que exclui o Feio. Feio, do ponto de vista de alguém, nada mais. Nas vanguardas do século XX, surge o triunfo do Feio também como contrapoder. A fealdade portuguesa pela mão do Almada, do Amadeo de Souza Cardoso, dos expressionistas Mário Eloy, Pomar, Júlio Resende, dos surrealistas Dacosta, Cruzeiro Seixas. Nos percursos de Paula Rego, Bértholo, Eduardo Batarda. Todos dando corpo a uma "bela fealdade" contemporânea.

 

Bernardo Pinto de Almeida escreveu: “O Feio é a irrupção do expressivo. Enquanto houver fealdade, há esperança e utopia.”

 

Nota: quase em simultâneo no SPNI e aqui.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:59
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