Linhas depuradas inauguram a entrada. Pendurados os abafos num bengaleiro/escultura metálica, libertos os gestos, cirandar pelo espaço é prazer. Luz a rodos que os verdes das floreiras interiores e exteriores encantam.
Teresa C. (homenagem a Manuela Pinheiro), Ernâni Oliveira, Bravo da Mata
Teresa C.
Originais a óleo, maioria, ou a guache forram, sem excesso, paredes. O do Ernâni remete para a profissão do casal. Móveis de design com linhas apostadas no linear. A simplicidade e restrição de objectos ociosos, minimalismo soe dizer-se, é a característica fundamental. Não seja julgado frio, pelo despojamento, o resultado. Sucedem-se recantos onde apetece ficar entretido numa leitura aconchegada, silenciosa seja esse o desejo. No escritório, parede com livros arrumados em biblioteca que rasa o tecto. Escada deslizante permite aceder às prateleiras cimeiras. A muita tecnologia não sobrecarrega ao surgir como reservada ao essencial pelas formas simples, bem esgalhadas, e cabos invisíveis.
Manuela Pinheiro (as três primeiras obras, pertencendo a última à colecção 'Afectos' da mesma pintora), Teresa C., peça de autor que não registei
Não há divisão rainha. Sem fracturas, todas se harmonizam ao avançar duma para outra. Preto, branco, encarnado, tons de terra e mar associam ao espaço a bondade da natureza.
“No Dia de Natal tem bico de pardal. Janeiro fora, mais uma hora, e quem bem contar hora e meia vai achar.”
Se do bico mal conta dei, passado Janeiro encontro mais da hora e meia no dia que o Sol faz. E anima acordar, ao fim-de-semana, com luz cheia, ainda que o hábito das madrugadas úteis pelas seis não se desfaça apenas por o calendário ter ócio escrito em maiúsculas. Infiltrado o brilho da candeia solar pelas frinchas, a alma pede rua, pede raios em feixe largo captado na face. É altura das gangas, de abandonar saltos, de sair com rosto lavado que ordena a dispensa de artifícios que o tinjam. Igual continuará até à volta das madrugadas.
Soltar a música. Escrever após o café tomado na privacidade, deambular pelas curvas cerebrais onde foram preenchidos arquivos, arrumados como se gavetas de secretária fossem. Bater a porta, dar voltas à chave deixando em caixa tapada preocupações e afazeres, que também os há para cumprir e, malvados!, do calendário não querem saber. Dispensar pressas e sentir por conta exclusiva o tempo. Saber minha a felicidade de não habitar um da meia dúzia de planetas do Sistema Kepler que orbitam em torno da estrela Kepler-11 parecida com o Sol. Dos períodos orbitais com duração inferior a cinquenta dias pela exiguidade da curva percorrida, advém quentura extrema. Desta não gosto – delicia-me frio com sol a rodos, enfiar casacão e proteger apenas o devido, que a cara precisa de nariz encarnado pelo gelo inspirado. Fotografar o tanto que a cidade oferece. Deixar-me ir no dia sem projectos além do minuto seguinte.
Privilégio ter acesso a casas de amigos onde arte variada está nas paredes. Do mesmo pintor, cerâmica e óleo colaboram em recantos sonhadores.
Manuela Pinheiro, "Colecção Arte da Família" e "Colecção Arte Minha"
A família tem opções variadas. Por coerência, conservei elos comuns. Manuela Pinheiro, é um deles.
Bravo da Mata, "Colecção Arte da Família"
Bravo da Mata é elo outro. Nas paredes, a riqueza cromática e da composição.
Tríptico e cerâmica de Bravo da Mata, "Colecção Arte da Família"
Abstractos em óleo e cerâmica. Diariamente reinventados nas leituras múltiplas. Jamais repetidas. O 'entre-paredes' constantemente renovado.
Manuela Pinheiro, Ernâni Oliveira, Ronghua.S, "Colecção Arte Minha"
Gostos específicos. Variados nas formas e projecções nas telas, adequados aos recantos onde me alargam família.
Conceição Ramos, óleo, Carlos Oliveira, escultura,"Colecção Arte Minha"
A paleta da Conceição, esculturas várias, entre elas esta que me vê e eu vejo adormecer. Existe melhor do que (con)viver com mestres escolhidos para companhia?
De suportes pictóricos originais, expostos ou aqui omissos, não abdico - permitem contemplação e reflexão íntima.
Outra, escreveu ela. Depois, palavra/título no vídeo. A mesma, sempre, como árvore que cresce robusta, jamais renegando a condição que a torna fabulosamente única entre semelhantes. Na coerência da árvore e daquela mulher, começa o deslumbre no caminho abobado por braços esguios e nus.
A noite fora de chuva intensa, filtrado o som das bátegas pelos vidros duplicados e estores descidos. Na manhã, havia sol e frio e chão húmido. Convite a sair, peregrinar num parque que não apenas outro de muitos. Exótico nos recantos murados por cactos desafiadores dos anos e dos ciclos rodados. A meio, estranhamente, tronco esculpido em geometrias improváveis.
Água cerca. Limitada por ténues fronteiras ao embeber o solo circundante. Nele, pés atrevidos cavam registos por tudo desejarem gravar. E a ave saúda o dia fruindo do espelho reflector e habitat. Com ela nadam folhas de plátanos obrigadas pelo ventar na noite e fatalidade sazonal.
Margens. Ricas. Gosto propício às aves e a quem delas pretende saber. Primeiro, observadas. Habituadas à curiosidade passante, continuam, sem falsos temores, no lugar. Privilegiam a partilha pelo bem tornado comum onde debicam alimento que ignora diferenças entre espécies. Serenas, continuam o labor e o preguiçar.
O empedrado, pisado, atropelado por sobejos vegetais, conduz a veredas onde se jogam destinos inesperados e descobertas novas ou que repetem o visto noutros mantos/úteros - cogumelos em bouquet contrastam, enriquecem, a paleta cromática que com os verdes brinca.
Fosse o meu olhar pintor, da paleta segura pela alma escolheria tons que recriassem o real sem o copiar no estilo ‘lambido’ iniciático. Difícil fugir-lhe pela tirania que a perfeição natural impõe. No entanto, talento educado simplifica formas e utiliza cores distintas do visto. Inventa-as para retratar de modo outro o mesmo que rodeia as gentes.
Esperado. Fintei o desejo de não arredar dali. Olhei-o de soslaio para desinstalar o imediato como opção primeira do espírito. A disciplina íntima, ajuda a contornar facilidades apetitosas e confortáveis, mas que, é sabido, podem viciar o ler do existente, compulsar atitudes pela falta do gerir. Adiei-o até ao regresso. Conhecia-lhe os detalhes de vezes anteriores e da tela do Ernâni Oliveira que me testemunha, em casa, os passos. Vigiei-o. Despedi-me com a alma feita tela e a tela já feita na alma.
Este lugar ameaça ser, já é?, lugar para meditações superficiais e requentadas sobre o corrido no país e no mundo pequeno que a Teresa C. abrange com ler/ouvir. O ver é diferente: na cidade, travessa e atravessada, regista detalhes grados e miúdos. Aparentes, estes, por ocultarem, mostrando, vidas trágicas ou (des)esperançadas de “gente como nós”.
Pelas duas horas após dia meado, deambula na Praça de Espanha. Ao longe e na vez primeira, figura esborratada; braço ao alto. Exibia objecto. No perto, idoso. Samarra coçada. Gola de raposa há muito desfeita em pó na terra. O braço levantado segurava, na mão, saco de plástico contendo meia dúzia de ‘línguas-da-sogra’. Não requeria esmola. Vender, barato, bem que a saudosos das praias d’antanho satisfizesse. Como ele. Origem minhota ou «terreola» do Litoral Norte, suposição. Rosto vincado. Postura digna. Conjecturas outras: transplantado da terra original para meio urbano por conta de filhos entregues ao ganha-pão; reforma pequena.
De novo, Praça de Espanha. Sete e quarenta de manhãs mal nascidas. Candeeiros escorrendo luzes no quase desfeito breu. Cinza negro, o carro. Pequeno. Velhice conservada. O relógio pode acertar-se pelo piscar á direita. Fim: estacionamento de terra batida atrás da Comuna. Um minuto de atraso e não se dará pela vida condutora. De onde virá? Acordada desde as seis? Ramerrame quotidiano serra de ilusões (al)quebradas? Entusiasmo por trabalho novo e pontualidade como traço gravado na matriz/personalidade?
A Praça de Espanha, tantos sítios mais!, mostra realidades mais ricas que as sustentadas por telas e pincéis. Redutora: o Ernâni Oliveira retrata-as como ninguém.
Atentar no folhetim Crespo, isso sim, é falta de assunto. Por hoje, evitei a tentação.