Quinta-feira, 29 de Setembro de 2011

PODIA SER DEZANOVE O SÉCULO

 

Tem trinta e quatro anos, baptizada Célia, é filha duma irmã. Foi engendrada em silêncio incestuoso no quarto dos irmãos, ao lado daquele onde dormia a mulher do pai. Família pobre entre os mais pobres. Cresceu em ambiente de rancor e ódios, excepto no seio dos irmãos/tios. Todos iam à lenha para alimentar o fogo donde magras refeições eram distribuídas, amanhavam leiras que gente boa e condoída lhes dava para cultivo delas provindo a fatia maior do sustento. Roupas, o mesmo. Recebendo pintos ou coelhos, era feita criação; a seu tempo, presenteavam os benfeitores – haviam aprendido, sabe Deus como, o sentido da palavra gratidão.

 

Infância e adolescência cruel para meninos tão meninos como todos. Gostavam da escola que lhes abrandava os carregos, sentiam-se iguais aos colegas nas horas ocupadas com livros e cadernos e lápis. Chegados a casa, a faina costumada. Como brinquedos sobras de outras crianças, aqueles que construíam, os animais do campo, os segredos das matas próximas. À medida dos anos e da força, trocavam escola por ofício que acrescentasse pecúlio à família. Os mais afoitos emigraram. Foi o caso da Célia, não sem que antes, tinha dezasseis anos, parisse filho do que viria a ser marido. Na Suíça, viu luz o segundo, fisionomia copiada da mãe. Porque o álcool desatinava o seu homem, os maus-tratos fizeram dela fugitiva com uma criança ao colo e outra pela mão. Instituições facilitaram-lhe o regresso. Par de anos depois, engravida de um namorado. O pai avisou-a:

_ Sendo menina não a quero em casa.

E foi. Que remédio outro senão procurar sítio onde vivesse com os três filhos? Uma vizinha tinha casebre desocupado. Ofereceu-lho. Aceitou. Fardos de palha serviam de cama, piolhos atormentavam-na e às crianças. Perante a realidade, foi-lhe proposto dar a pequerrucha para adopção. Consolou-a fantasiar a menina com um viver melhor que o dela.

_ Sei onde a minha filha está e vejo-a, às escondidas, quando as saudades apertam.

Tempo de alcoolismo, do alheamento da realidade, da cura deliberada através da ajuda que pediu.

_ Não estou curada. Serei alcoólica toda a vida. Mas, sempre que a tentação chega, penso em mim, na minha família e ultrapasso-a. Continuo as reuniões que sinto ajudarem-me.

 

Ontem, seguiu para a Guarda a caminho de mais uma. O actual companheiro, homem trabalhador que a ama, acompanhá-la-ia até ao autocarro. Seis e meia do amanhecer, pequeno-almoço no tabuleiro pousado na mesa do terraço, assento no cadeirão de verga, lusco-fusco na montanha em frente, candeeiro público aceso, senti os passos da Célia. Por nesga da sebe, vislumbrou-me.

_ Bom dia minha senhora!

_ Que ida e volta corram bem, minha querida!

“Querida” sentido pela admiração e coragem desta jovem mulher.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

- Renovo gratidão ao Justo por estas lembranças boas de idos do SPNI. Muito obrigada.

- Em breve, retomarei a intervenção nos comentários. De momento, escasseia disponibilidade.

 

publicado por Maria Brojo às 10:35
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Segunda-feira, 13 de Setembro de 2010

SANDES DE PEPINO

Douglas Hofmann, Jack Vettriano

 

Ler Eça e absorver a fusão entre romantismo e realismo. Apetitosamente mordaz nas personagens tipificadas, deliberadamente escolhidas para intocável retrato do país. Desfolhada a última página, tirar um café e estender visão íntima pelo que éramos e somos. Antes e agora, um sítio, este Portugal de ambições que a história enumera e soube, infelicidade nossa, desbaratar o havido. Começou o imbecil D. Fernando I e dele até agora, à custa da miséria do povo, só o narigudo Salazar comporia os cofres do Estado. Tenho para mim que poder nas mãos de bem apessoados reinantes (literal ou metaforicamente), exaurem as finanças públicas. Salazar tinha aquele ar de judeu das caricaturas que lendas e contos associam a avareza e a olho longo sobre o alheio. O nariz ajudava, a origem beirã complementava o modo como era e é lido nos feitos e defeitos.

 

Lá fora, Jane Austen, nascida, aproximadamente, três quartos de século mais cedo que Eça, não lhe ficou atrás. Através de ficções românticas, como era de bem para mulher filha da sua época, lidava com as palavras melhor do que com feitura de sandes de pepino. Intervinha cirurgicamente na sociedade que a envolvia – escrita cortante, subtilmente irónica. Sem piedade esventrava a desinteligência dos normativos públicos, tanto mais rígidos quando o estatuto económico subia ou era almejado trepar na rígida escada social. Desenhava homens perfeitos, mulheres frágeis e vítimas de tentação.

 

O texto despretensioso (Sexo? Sim, mas com orgasmo!) em que a Teresa C. aborda inquietação e dúvidas femininas sobre o constatado nos comportamentos de alguns homens sem que sobre eles teça vilanias, não foi genericamente entendido. Tomado como panfletário, súmula de queixas e mágoas de mulheres consignadas pelo estereótipo em uso. As argumentações dos comentadores provam-no. A razão última do ruído na comunicação escrita prende-se com a falta de talento em objectivar questões pela imitação rafeira de cronista que, querendo ou sem querer, a Teresa C. é.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 07:54
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