Mati Klarwein, Henry Lee Battle
Beijos sempre são. Confirmam amores, inauguram conhecimento pelo aflorar da face, uma atracção que do olhar foi além. Falam e contam de quem os partilha em mistura antecipada dos corpos e suas bocas. Crismam intimidades nascentes como acertadas ou equívocos e, dum modo ou doutro, concebem lembrança que num inesperado momento regressa. Talvez sorriso pintado de nostalgia acompanhe a volta do instante passado, a memória de veludo. Talvez o beijo convoque tristeza ácida se mágoas vieram depois. Mas, ainda assim, certo foi o começo iludido, a expectativa, o arrepio do novo, a fragrância desconhecida, a embriaguez que anulou o deslizar do tempo. Pode viver-se com muitas privações; sem beijos, não.
O Abelaira falava no Bosque Harmonioso de muitos beijos e bocas. Cristóvão Borralho por uma enfeitiçado haveria de, feito louco, ir de continente em continente para a reencontrar. Deu com ela, sim, muitos anos depois. A emoção da experiência prima veio intocada. Cessou a busca. Cumpriu o destino escolhido.
E se, como escreveu Gedeão, lágrima de preta está isenta de “… sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio.”, já a beijo de mulata encerra mistérios. Germina, selvagem, nalguns quintais de Moçambique. Floresce em rosa ou lilás. Dons medicinais caracterizam-na. Misturada com folhas e ervas seleccionadas, dá provas de combater eficazmente doenças oportunistas do HIV. Hábeis nesta farmacopeia tradicional, curandeiros sábios logram êxito onde a farmácia tradicional falha. Milagres do beijo de mulata que na região de Nampula acontecem.
CAFÉ DA MANHÃ
Henry Lee Battle
Quando a Terra geme e suspira, acomoda zonas íntimas pressionada por forças. De tensas, afastam placas, qual capa de tartaruga invisível. Colidem ou sofrem torsões. As rochas, que rejeitam elevada condição elástica, eliminam a energia potencial em excesso. Libertam-na como fisga esticada ao máximo que retoma forma comum. E vão ondas por aqui ou ali. Regiões que as apanhem contam sustos e danos. Gentes soçobram. Patrimónios destruídos. Vidas sem eira ou beira que as recolha pela elevada intensidade do arrumo. Catástrofe natural como outras que, igualmente, apagam o construído em anos por mãos laboriosas de quem fenece com a obra.
No drama, que a esperança se aninhe após o luto. Que não sejam também destrutivos espíritos sobreviventes como os nossos assentes numa plataforma mantida em relativo sossego. Mesmo sem tragédias de monta abrangendo milhares de portugueses, resistimos a acreditar no bom advir. A albufeira do Alqueva é exemplo. Muitos tomados por sábios, mas ‘velhos postados no Restelo’ garantiram que jamais a capacidade máxima seria atingida. Foi. É o maior lago artificial da Europa. Cumprido o primeiro objectivo do projecto Alqueva: “reserva estratégica de água, com capacidade para fazer face a três anos consecutivos de seca, com garantia de disponibilidade para abastecimento público, agricultura e produção de energia".
Parecemos grilo comum que, sem polinizar, engole flores. Verdade aberta à excepção de uma variedade da família “Glomeremus”: não tem asas, mede entre dois a três centímetros e possui antenas largas. Trata carinhosamente orquídea onde poise – transporta o pólen e ajuda-a a procriar. Assim fossem benévolos os ajustes terrestres!
CAFÉ DA MANHÃ
“Haiti”
“Quando você for convidado pra subir no adro da
Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam
estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de
meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui”
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros