Terça-feira, 21 de Outubro de 2014

OBRAS DE SANTA ENGRÁCIA

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Marc Holmes – “Santa Engrácia”                                                                             Marc Holmes – “Mosteiro dos Jerónimos”

 

“Simão tapou o rosto, sem dizer palavra. Mas no íntimo do seu coração gritava desesperadamente um nome: Violante! O burburinho aumentava. A multidão comprimia-se. A execução ia ter o seu início, mesmo em frente da nova igreja de Santa Engrácia, cujas obras já tinham começado. Cabisbaixo, sempre silencioso, Simão Pires deixou-se conduzir. As ceri­mónias para tirar a vida a um homem sob a égide da Justiça são morosas e solenes. Simão assistiu a tudo como se estivesse ausente. Amarraram-no sobre a pira de lenha. Acenderam a fogueira. Quando as labaredas envolveram o corpo de Simão, este gritou desesperadamente:

— É tão certo morrer inocente do que me acusam, como estas obras da igreja nunca mais acabarem!

O povo que o escutou entreolhou-se, confuso. Que teriam a ver as obras da igreja com o roubo que ele cometera? O povo só mostrou curiosidade enquanto Simão deu sinais de vida. Mal o viram morto, todos se foram embora, como quem regressa a casa após um espetáculo. E tudo quanto se relacionava com o roubo pareceu morrer com ele.

 

Os anos foram seguindo. Imperturbáveis. Sem descanso. Violante, a jovem e gentil noviça de Santa Clara, fez a vontade ao seu pai: professou, com o nome de Maria do Céu. E um dia, muito tempo depois da morte de Simão, encontrando-se num convento em Orense, foi chamada de urgência para assistir aos últimos momentos de um pobre ladrão. Ela admirou-se:

— É a mim que ele deseja falar, senhor padre capelão?

— Sim, madre.

— Mas não o conheço...

— Ele insiste. E penso que deve fazer-lhe a vontade.

— Porquê?

— Deus é grande! Vá, reverenda madre! Vá, enquanto a vida não se apaga daquele corpo.

 

A madre Maria do Céu saiu a caminho da prisão. A atmosfera era pesada. A luz fraca. Madre Maria do Céu sentia-se confusa nem sabia bem porquê. Aproximou-se do preso. Vendo-a, este reanimou-se um pouco:

— Madre, minha madre, eu sei que vou morrer! Por isso vos chamei.

— Mas porquê?

— Porque só a vós, madre Maria do Céu, outrora noviça de Santa Clara, quero confessar um segredo.

— Que segredo?

— Um segredo que tem sido o remorso de toda a minha vida!

— Dizei, então!

Respirando a custo, o prisioneiro confessou:

— Sou um miserável gatuno, minha madre!

Suavemente, ela retorquiu-lhe:

— É a Deus, Nosso Senhor, que tendes de dar contas dos vossos atos, e não a mim!

— É certo... Mas o que tenho para dizer-vos interessa-vos pessoal­mente!

 

A freira abriu os olhos como quem não entende bem, mas não inter­rompeu o moribundo. Este continuou:

— Lembrais-vos ainda de Simão Pires?

Este nome soou como dobrar de finados no coração da pobre freira. Receou ter ouvido mal. Trémula, perguntou:

— Dissestes... Simão Pires?

— Sim!

— E por que me falais dele?

— Porque fui eu que o conduzi à morte!

— Vós? Como?

— Fui eu que roubei os cálices de ouro e as sagradas partículas da igreja de Santa Engrácia! Sabia que ele passava ali todas as noites com o cavalo de cascos entrapados para vos ir ver.

A freira murmurou:

— Oh meu Deus, poupai-me!

Mas o moribundo continuou:

— Assim fiz recair as suspeitas sobre Simão Pires. Calculava que devia gostar muito de vós e não desejasse comprometer-vos. Mas agora que vou morrer preciso desabafar! Talvez o meu castigo seja menor...

A freira não conseguiu suster as lágrimas. Os votos que fizera haviam-na desligado das coisas mundanas. Ergueu-se e murmurou:

— Que Deus vos perdoe, como eu vos perdoo!

Silenciosamente, retirou-se para o seu convento.

 

Morreu o ladrão. Morreu depois a madre Maria do Céu. Nada pare­cia memorar o triste caso de Santa Engrácia. Mas um facto bem singular acontecia: as obras do novo templo começadas quando da execução de Simão Pires, dir-se-ia não mais terem fim! E de tal modo que o povo se habituou a sentenciar acerca de tudo que não chega ao seu termo: «Ora! É como as obras de Santa Engrácia!».”

 

Nota – Retirado e adaptado daqui.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

 

publicado por Maria Brojo às 10:55
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