Marc Holmes – “Santa Engrácia” Marc Holmes – “Mosteiro dos Jerónimos”
“Simão tapou o rosto, sem dizer palavra. Mas no íntimo do seu coração gritava desesperadamente um nome: Violante! O burburinho aumentava. A multidão comprimia-se. A execução ia ter o seu início, mesmo em frente da nova igreja de Santa Engrácia, cujas obras já tinham começado. Cabisbaixo, sempre silencioso, Simão Pires deixou-se conduzir. As cerimónias para tirar a vida a um homem sob a égide da Justiça são morosas e solenes. Simão assistiu a tudo como se estivesse ausente. Amarraram-no sobre a pira de lenha. Acenderam a fogueira. Quando as labaredas envolveram o corpo de Simão, este gritou desesperadamente:
— É tão certo morrer inocente do que me acusam, como estas obras da igreja nunca mais acabarem!
O povo que o escutou entreolhou-se, confuso. Que teriam a ver as obras da igreja com o roubo que ele cometera? O povo só mostrou curiosidade enquanto Simão deu sinais de vida. Mal o viram morto, todos se foram embora, como quem regressa a casa após um espetáculo. E tudo quanto se relacionava com o roubo pareceu morrer com ele.
Os anos foram seguindo. Imperturbáveis. Sem descanso. Violante, a jovem e gentil noviça de Santa Clara, fez a vontade ao seu pai: professou, com o nome de Maria do Céu. E um dia, muito tempo depois da morte de Simão, encontrando-se num convento em Orense, foi chamada de urgência para assistir aos últimos momentos de um pobre ladrão. Ela admirou-se:
— É a mim que ele deseja falar, senhor padre capelão?
— Sim, madre.
— Mas não o conheço...
— Ele insiste. E penso que deve fazer-lhe a vontade.
— Porquê?
— Deus é grande! Vá, reverenda madre! Vá, enquanto a vida não se apaga daquele corpo.
A madre Maria do Céu saiu a caminho da prisão. A atmosfera era pesada. A luz fraca. Madre Maria do Céu sentia-se confusa nem sabia bem porquê. Aproximou-se do preso. Vendo-a, este reanimou-se um pouco:
— Madre, minha madre, eu sei que vou morrer! Por isso vos chamei.
— Mas porquê?
— Porque só a vós, madre Maria do Céu, outrora noviça de Santa Clara, quero confessar um segredo.
— Que segredo?
— Um segredo que tem sido o remorso de toda a minha vida!
— Dizei, então!
Respirando a custo, o prisioneiro confessou:
— Sou um miserável gatuno, minha madre!
Suavemente, ela retorquiu-lhe:
— É a Deus, Nosso Senhor, que tendes de dar contas dos vossos atos, e não a mim!
— É certo... Mas o que tenho para dizer-vos interessa-vos pessoalmente!
A freira abriu os olhos como quem não entende bem, mas não interrompeu o moribundo. Este continuou:
— Lembrais-vos ainda de Simão Pires?
Este nome soou como dobrar de finados no coração da pobre freira. Receou ter ouvido mal. Trémula, perguntou:
— Dissestes... Simão Pires?
— Sim!
— E por que me falais dele?
— Porque fui eu que o conduzi à morte!
— Vós? Como?
— Fui eu que roubei os cálices de ouro e as sagradas partículas da igreja de Santa Engrácia! Sabia que ele passava ali todas as noites com o cavalo de cascos entrapados para vos ir ver.
A freira murmurou:
— Oh meu Deus, poupai-me!
Mas o moribundo continuou:
— Assim fiz recair as suspeitas sobre Simão Pires. Calculava que devia gostar muito de vós e não desejasse comprometer-vos. Mas agora que vou morrer preciso desabafar! Talvez o meu castigo seja menor...
A freira não conseguiu suster as lágrimas. Os votos que fizera haviam-na desligado das coisas mundanas. Ergueu-se e murmurou:
— Que Deus vos perdoe, como eu vos perdoo!
Silenciosamente, retirou-se para o seu convento.
Morreu o ladrão. Morreu depois a madre Maria do Céu. Nada parecia memorar o triste caso de Santa Engrácia. Mas um facto bem singular acontecia: as obras do novo templo começadas quando da execução de Simão Pires, dir-se-ia não mais terem fim! E de tal modo que o povo se habituou a sentenciar acerca de tudo que não chega ao seu termo: «Ora! É como as obras de Santa Engrácia!».”
Nota – Retirado e adaptado daqui.
CAFÉ DA MANHÃ
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