Boris Vallejo e Julie Bell
Aberta, oficialmente, a época da caça ao voto. Um Golias treinado, protegido com pesada cota de malha em bronze, Lami, do anterior falso irmão e com menos côvados de poder, mais uns aprendizes de líderes dos filisteus já antes haviam arrebanharado lanças, dardos e espadas. Armados até aos dentes, juntaram sofismas ao equipamento guerreiro. E os ‘David’, coitados, olham ao alto engasgados pelo desespero do advir e bradam a pergunta fatal: _ como derrubar monstro com tantas cabeças? Olham ao redor e na margem do riacho da Verdade encontraram seixos polidos. Com eles encheram saco. Fechado, até ver, até passarem as horas todas do par de semanas que trará o combate final entre os ‘David’ e o monstro caçador das múltiplas cabeças. Nesse momento, aberto o saco de pedras. Dos bolsos, saídas fundas. E porque a sorte protege audazes, delas esticarão o couro. Pontaria talvez afinada. À vista, as bocas escancaradas do monstro em forma de quadrados no boletim de voto. Sem hesitações, é preciso que rodopiem as fundas e os seixos atinjam o alvo. Perplexo, sem estrebuchar, o monstro engolirá as línguas. Feito desfeito se estupidamente inocentes ou maliciosos infiltrados no exército dos ‘David’ optarem pelo seguidismo.
CAFÉ DA MANHÃ
Cortesia do António.
Julie Bell
Espiritualidade e humanidade caminham mão na mão. Sempre procurado entendimento entre o sentido do trânsito na Terra e aspiração a infinito, a beber cálice do elixir da longa vida de que fez objectivo a busca alquimista tomada, mais tarde, por feitiçaria. Bruxedos e feitiços, almas malignas, foram assunto no SPNI e mereceram comentários discordantes e fundamentados. Racionalidade versus oculto. À consideração de Fata Morgana, Açúcar C., Perseu, comentadores do texto, e demais leitores, fica adaptação duma história atribuída a Balzac.
Decorre luxuriante festa realizada no palácio de Ferrara, numa noite de Inverno, onde residia Don Juan Belvidero. No auge da embriaguez de todos os presentes no festim, surge à porta um velho criado que, triste, anuncia que Bartolomeo Belvidero, pai de Don Juan, abeira-se da morte. Imediatamente o anfitrião perde a alegria, tal como quem abandona um guardanapo usado, e sai do salão à procura do pai, deixando atrás de si uma festa de clima frio e opaco. Don Juan chega ao leito do mortiço com a alma cheia de arrependimento, contrastando com a tranquilidade do pai.
_ Que remorsos sinto, meu pai! Se fosse possível restituir-te a vida dando uma parte da minha!
O moribundo:
_ Eu bem sabia, meu filho, que podia contar contigo. Vai, serás feliz. Viverei, mas sem retirar um único dos dias que te pertencem.
_ Está delirando, pensou Don Juan.
Bartolomeo explicou ter descoberto uma maneira de ressuscitar. Pediu ao filho que o esfregasse com um líquido, mal desse o último suspiro. Faleceu. O filho embebeu um pano na poção e molhou a pálpebra direita do pai. O olho, com o brilho do olho dos vivos, abriu-se no mesmo instante. Perguntou a si mesmo:
_ Furá-lo? Será parricídio?
O olho do pai, piscando ironicamente, disse:
_ Ah!, ah!, esse frasco contém feitiçaria.
O filho aproximou-se do olho para o esmagar. Uma lágrima rolou pelas faces encovadas do cadáver e caiu na mão de Belvidero. Sentando-se, exclamou:
_ Escalda!
Reuniu coragem. Esmagou o olho.
Don Juan ergueu um monumento de mármore sobre o túmulo do pai. Passa a querer apoderar-se do mundo: vive de maneira ainda mais libertina. Renunciou a um mundo melhor, nunca mais pronunciado nome sagrado e passou a considerar os santos de pedra nas igrejas obras de arte.
Com sessenta anos, Don Juan Belvidero casou-se com uma andaluza. Teve alguns filhos. Filipe Belvidero, um deles, era tão conscientemente religioso como o pai fora ímpio. E chegou um tempo em que este e doña Elvira, a esposa do velho, teve que cuidar de Don Juan, que expirava na cama. O ancião, às vezes, rabujava, acusando-os de que a dedicação que lhe prestavam era devida à fortuna por ele investida em rendas vitalícias para a família, mas logo, afectuosamente, suplicava perdões.
Numa noite de Verão, Don Juan sentiu a morte. Do leito, ordenou que o filho Filipe viesse. Explicou-lhe que, por temer o inferno, mal expirasse o rapaz deveria untar-lhe o corpo ainda quente com uma santa água que guardava. O acto devia ser acompanhado pela récita de Pai Nossos e Avé Marias. Filipe, confuso, ao lado do pai morto, precipita-se com o pano molhado para a unção. Inicia o trabalho, começando pela cabeça, descendo para o pescoço e o braço. Ao sentir o membro direito do pai levantar-se e apertar-lhe o pescoço, o rapaz solta um grito de pavor e deixa o frasco cair, perdendo todo o líquido. Uma multidão de empregados do castelo, ouvindo o urro desesperado, carregando tochas, correram e encheram o quarto vendo o bizarro facto.
_ Milagre!
Doña Elvira, a esposa, manda chamar o abade do convento de San Lucar. Este, aproveitando-se da situação para aumentar as suas rendas, anuncia uma cerimónia de apoteose no convento que doravante se chamaria San Juan de Lucar. A cabeça do morto fez uma jocosa careta para as palavras do religioso. O convento, outrora uma antiga mesquita, passou a estar sempre lotado. Multidão, dentro e fora, aglomerava-se para testemunhar a redenção do singular novo santo.
Numa ocasião, a música cantada na catedral repleta de pessoas ajoelhadas foi interrompida por violento trovão. Don Juan, demasiado espirituoso para permanecer calado, respondeu à cena com um diabólico riso. Gritou Belvidero:
_ Vão todos para o diabo, bestas, brutos que sois! Insultais a majestade do Inferno!
Então a cabeça do morto largou violentamente o corpo, avançando para devorar a cabeça do abade.
_ Imbecil! Existe um Deus!
Nesse momento, o abade mordido no crânio, expirou.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros