Segunda-feira, 10 de Janeiro de 2011

QUE O MONSTRO ENGULA AS LÍNGUAS

Boris Vallejo e Julie Bell

 

Aberta, oficialmente, a época da caça ao voto. Um Golias treinado, protegido com pesada cota de malha em bronze, Lami, do anterior falso irmão e com menos côvados de poder, mais uns aprendizes de líderes dos filisteus já antes haviam arrebanharado lanças, dardos e espadas. Armados até aos dentes, juntaram sofismas ao equipamento guerreiro. E os ‘David’, coitados, olham ao alto engasgados pelo desespero do advir e bradam a pergunta fatal: _ como derrubar monstro com tantas cabeças? Olham ao redor e na margem do riacho da Verdade encontraram seixos polidos. Com eles encheram saco. Fechado, até ver, até passarem as horas todas do par de semanas que trará o combate final entre os ‘David’ e o monstro caçador das múltiplas cabeças. Nesse momento, aberto o saco de pedras. Dos bolsos, saídas fundas. E porque a sorte protege audazes, delas esticarão o couro. Pontaria talvez afinada. À vista, as bocas escancaradas do monstro em forma de quadrados no boletim de voto. Sem hesitações, é preciso que rodopiem as fundas e os seixos atinjam o alvo. Perplexo, sem estrebuchar, o monstro engolirá as línguas. Feito desfeito se estupidamente inocentes ou maliciosos infiltrados no exército dos ‘David’ optarem pelo seguidismo.

 

CAFÉ DA MANHÃ

  

Cortesia do António.

 

publicado por Maria Brojo às 08:24
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Segunda-feira, 9 de Agosto de 2010

BRUXEDOS, FEITIÇOS E MALINAS

Julie Bell

 

Espiritualidade e humanidade caminham mão na mão. Sempre procurado entendimento entre o sentido do trânsito na Terra e aspiração a infinito, a beber cálice do elixir da longa vida de que fez objectivo a busca alquimista tomada, mais tarde, por feitiçaria. Bruxedos e feitiços, almas malignas, foram assunto no SPNI e mereceram comentários discordantes e fundamentados. Racionalidade versus oculto. À consideração de Fata Morgana, Açúcar C., Perseu, comentadores do texto, e demais leitores, fica adaptação duma história atribuída a Balzac.

 

Decorre luxuriante festa realizada no palácio de Ferrara, numa noite de Inverno, onde residia Don Juan Belvidero. No auge da embriaguez de todos os presentes no festim, surge à porta um velho criado que, triste, anuncia que Bartolomeo Belvidero, pai de Don Juan, abeira-se da morte. Imediatamente o anfitrião perde a alegria, tal como quem abandona um  guardanapo usado, e sai do salão à procura do pai, deixando atrás de si uma festa de clima frio e opaco. Don Juan chega ao leito do mortiço com a alma cheia de arrependimento, contrastando com a tranquilidade do pai.
_ Que remorsos sinto, meu pai! Se fosse possível restituir-te a vida dando uma parte da minha!

O moribundo:
_ Eu bem sabia, meu filho, que podia contar contigo. Vai, serás feliz. Viverei, mas sem retirar um único dos dias que te pertencem.
_ Está delirando, pensou Don Juan.


Bartolomeo explicou ter descoberto uma maneira de ressuscitar. Pediu ao filho que o esfregasse com um líquido, mal desse o último suspiro. Faleceu. O filho embebeu um pano na poção e molhou a pálpebra direita do pai. O olho, com o brilho do olho dos vivos, abriu-se no mesmo instante. Perguntou a si mesmo:

_ Furá-lo? Será parricídio?

O olho do pai, piscando ironicamente, disse:

_ Ah!, ah!, esse frasco contém feitiçaria.
O filho aproximou-se do olho para o esmagar. Uma lágrima rolou pelas faces encovadas do cadáver e caiu na mão de Belvidero. Sentando-se, exclamou:
_ Escalda!

Reuniu coragem. Esmagou o olho.

 

 Don Juan ergueu um monumento de mármore sobre o túmulo do pai. Passa a querer apoderar-se do mundo: vive de maneira ainda mais libertina. Renunciou a um mundo melhor, nunca mais pronunciado nome sagrado e passou a considerar os santos de pedra nas igrejas obras de arte. 

 Com sessenta anos, Don Juan Belvidero casou-se com uma andaluza. Teve alguns filhos. Filipe Belvidero, um deles, era tão conscientemente religioso como o pai fora ímpio. E chegou um tempo em que este e doña Elvira, a esposa do velho, teve que cuidar de Don Juan, que expirava na cama. O ancião, às vezes, rabujava, acusando-os de que a dedicação que lhe prestavam era devida à fortuna por ele investida em rendas vitalícias para a família, mas logo, afectuosamente, suplicava perdões.

 

Numa noite de Verão, Don Juan sentiu a morte. Do leito, ordenou que o filho Filipe viesse. Explicou-lhe que, por temer o inferno, mal expirasse o rapaz deveria untar-lhe o corpo ainda quente com uma santa água que guardava. O acto devia ser acompanhado pela récita de Pai Nossos e Avé Marias. Filipe, confuso, ao lado do pai morto, precipita-se com o pano molhado para a unção. Inicia o trabalho, começando pela cabeça, descendo para o pescoço e o braço. Ao sentir o membro direito do pai levantar-se e apertar-lhe o pescoço, o rapaz solta um grito de pavor e deixa o frasco cair, perdendo todo o líquido. Uma multidão de empregados do castelo, ouvindo o urro desesperado, carregando tochas, correram e encheram o quarto vendo o bizarro facto.

_ Milagre!

 

Doña Elvira, a esposa, manda chamar o abade do convento de San Lucar. Este, aproveitando-se da situação para aumentar as suas rendas, anuncia uma cerimónia de apoteose no convento que doravante se chamaria San Juan de Lucar. A cabeça do morto fez uma jocosa careta para as palavras do religioso. O convento, outrora uma antiga mesquita, passou a estar sempre lotado. Multidão, dentro e fora, aglomerava-se para testemunhar a redenção do singular novo santo.

 

Numa ocasião, a música cantada na catedral repleta de pessoas ajoelhadas foi interrompida por violento trovão. Don Juan, demasiado espirituoso para permanecer calado, respondeu à cena com um diabólico riso. Gritou Belvidero:

_ Vão todos para o diabo, bestas, brutos que sois! Insultais a majestade do Inferno!
Então a cabeça do morto largou violentamente o corpo, avançando para  devorar a cabeça do abade.
_ Imbecil! Existe um Deus!

Nesse momento, o abade mordido no crânio, expirou.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:02
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