Liza Hirst, Vladimir Kush
Entreabertos os olhos, espreitadela ao relógio. O calor da pele que a noite fez crescer diz não ao acordar. Vira-se para o outro lado, tacteia o corpo da partilha, afaga-lhe ao de leve o rosto, enrosca-se mais. Que os ponteiros andem ou desandem tanto faz. O dormido ainda, como se fora complemento do sono/sonho, abraça-a, ajeita-a para a colar a ele. E ela acorda para a manhã, sem atrever movimento que o desperte de vez. O escuro cúmplice, por artes de contra-luz que pouca há, destaca o perfil de abandono no abraço.
Fosse outro tempo, ter-se-ia levantado com mansidão, deixaria que gestos leves a transportassem à cozinha. Rechearia os tabuleiros do pequeno-almoço, forraria com música dolente e em tom de murmúrio as paredes fechando portas de comunicação. No agora, o estar mudara: fruía do quente mútuo, voltava a dormitar. Que arribasse em simultâneo a consciência, que os corpos se entendessem de novo, que nada fosse perdido das ondas na praia-mar. Com sussurros de búzio na ilha onde eram, (re)começou a valsa lenta que fora adormecer.
CAFÉ DA MANHÃ
Antonella Cinelli, Liza Hirst
Ela tem vinte e nove, ele, trinta. Estão casados há um ano e pós de outro. Sem filhos. Ignoro antecedentes do par constituído, a posteriori, oficialmente – se houve o possível conhecimento mútuo, convivência íntima regular como a idade dos intervenientes indicia, se esporádica e superficial, portanto, insuficiente, se ela valoriza a passividade ou é crente no ‘ele muda’.
O caso tem quê de raro como queixa feminina motivadora de divórcio. Ela afirma-se incapaz de copular satisfatoriamente com o marido pela necessidade sistemática dele utilizar dose massiva e costumada de vernáculo inabitual durando o acto. No quotidiano, polido e terno. Na cama, transfigurado em papagaio. Quem lhe partilha o sexo, duma vez, vê todas. A continuidade é prova. E ela rejeita. Mal começa o débito, perde o estímulo. O acto sexual de potencialmente gratificante passa a fita gasta. Fosse ele mais contido no verbo, e tudo iria bem, afirma.
Não constando a obsessão contada das parafilias conhecidas, junto-a a outra também sem designação constante dos desvios sexuais – para acto satisfatório, engendrar, verbalizar, forçar anuência a fantasias de ménages a trois ou a muitos.
Voltando ao reconto vero. Perante a queixa e atitude desvalida, a pergunta foi óbvia: _ Porque não conversas com ele? Manifestas o teu desagrado, ouves, argumentas, colocas dúvidas não sendo clara a razão da persistência. Resposta: _ Não sou capaz. Jamais poderia ter a iniciativa de um diálogo sobre isto. Não consigo; apenas a ideia me viola.
A perplexidade da interlocutora é visível quando ela diz doer-lhe acabar o casamento por razão esta. Insiste: _ Já pensaste como a tua atitude é passiva? Que um casamento constrói-se fincado no diálogo tranquilo? Que numa relação afectuosa não há limites para a sexualidade, salvo estando em causa o desgosto do outro? Tens um desgosto. Conta-lho.
Sendo o (des)caso de hoje e não de quarenta anos recuados, como entender a incapacidade de comunicação? Reservas que Freud explicou ou tentou ou devia? Subterfúgio para razões outras e decisivas?
CAFÉ DA MANHÃ
Cortesia de Veneno C.
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros