Mariana Kalacheva
São diferentes pela terna corrente de aço que os prendem a nós. Melhores e piores que os outros nos defeitos e virtudes _ neles exacerbamos expoentes de imperfeita perfeição. A que interessa. A outra, a «compostinha» e erudita que não desafina num semitom, é tédio insuportável.
Passa um ano ou passam anos. Telefonemas ocasionais.
_ Está bem? Queres contar de ti?
_ Começas tu ou eu?
Qual enguia, desliza o tempo. Ele e ela experimentam a falta do «estarem». Noção que o quotidiano cheio havia erodido. Até um dia. Até a ausência adquirir o estatuto insano de prioridade em desalinho. Como o cabelo no acordar.
Antes do reencontro, o arrepio desce do cérebro até às pontas do corpo. A cumplicidade do olhar, da fala com lábios em frente estará intacta? Está. Estão. Ou não. Sabem no primeiro segundo. Depois é a escalada rumo a picos novos. Outros.
Já defendi, com veemência, a possibilidade de amizade sem pele entre um homem e mulher. O mesmo é dizer asséptica. Limpa de carne e sentimentos menores. Como o ciúme. Maiores, como a sedução e o desejo. No presente, medito nas certezas de outrora. Nada sei. Mas sinto. Amigo homem traz, implícito, registo diferente do estabelecido entre duas mulheres. Ambos aprazíveis. Porém, condimentados com especiarias desiguais. Pimenta e alecrim. Caril e salsa. Cravinho e noz moscada.
CAFÉ DA MANHÃ
Mariana Kalacheva Marta Spendowska
Sala de cinema. Um homem e uma mulher ocupam cadeiras contíguas. O filme contraria o tempo - francês, como a trilogia “Bleu, Blanc, Rouge” de Kieslowski. Não tem a Binoche a adoçar a tela no “Bleu” ou no “Chocolat”. O par de atores é desconhecido, mas a marca do não-tempo está lá. Ele e ela. Uma história de amor como todas as histórias, porque mesmo quando o ódio move o guião, nasceu do amor ou da ausência dele.
Par que tudo parece fazer divergir. Substituem a normalidade do casal jovem ou de meia-idade (re)descobrindo o amor ou o par em que ele, mais velho, seduz, e é seduzido por uma Lolita declarada legal para amar e ser amada. Não amor platónico, mas o que funde corpos, torna único o cheiro molhado pelo desejo.
Amor improvável aquele contado no escuro, à revelia das convenções sociais que tudo pretendem regular. Lento como o movimento da câmara. Não há obscenidade nos planos. Há presença que regista, discreta, o diário do desejo. O deles. Nascido num olhar e num beijo novo na vida dos dois (beijo vindo das funduras, prediz a verosimilhança de um amor).
Na tela, é encenado ato amoroso. Na sala, o par de estranhos nem dá pela presença mútua de tão mergulhados naquele oceano de beleza e intensidade. Não sentem o natural constrangimento de se verem presos numa rede de intimidade a que são alheios. Estão quase sós na sala - no final da tarde, poucos ousam não rumar ao destino certo da quentura familiar. E, por maquiavélico ou isento de intenção acaso da bilheteira, arrumados lado a lado.
Na sala, ela descruza a perna e muda de posição. O tempo ali existe. Toca-o na falta de jeito de quem nem despegou os olhos da fita. Ele força resposta mecânica ao pedido de desculpa. Tomam consciência de si. E, enquanto vêm os corpos escorrer a magnífica intensidade, sentem o outro respirar. Identificam o odor do corpo próximo. Aumentam a sensibilidade aos movimentos leves de cada um. Um homem, uma mulher. Na sala, na tela. Um gosto feito nó unindo, por horas, vidas distintas.
Os atos de amor urgentes e o seu encanto - a intrepidez, a pressa do afundar no outro. Este seria vagaroso. Presente a (...)
Nota: texto acabado de publicar aqui.
CAFÉ DA MANHÃ
Mariana Kalacheva
Não é fácil. Tem dias e momentos. Ora apetece pendurá-los na corda da roupa esticada fora das janelas do casario ou no quintal, ora desengrenar as roldanas do tempo para que fiquem cristalizados gestos de incondicional amor mútuo. Ora é desejo dar-lhes tabefe certeiro no instante e contexto adequados, ora permitir benevolência dialogada pelas maroteiras cometidas. E, de ‘ora’ em ‘ora’, crescem frutos e árvore. E amadurecem. Colhidos um dia. Então, testado o sabor e a firmeza da polpa que a seiva corrida até aos galhos alimentou.
No pomar, frutificaram troncos querendo ou não. Nalguns progride a indiferença pelo gerado; outros apostam na excelência e na generosidade como mais um sentido para os dias - sabem que isto de estar vivo acaba sempre mal. Optam pelo amor e dádiva. Pela autoridade responsável e conversada. Estão presentes. São fortes. Decididos. Aos poucos, constituída a referência perene que vai além da raiz.
Ser pai não é passeio no parque das delícias. Procriar é fácil; difícil é criar filhos como obra saída de cinzel atento e engenhoso. E porque no pomar mais árvores e frutos existem e condicionam e interagem, nem sempre o esculpido corresponde ao esquisso e à dedicação e ao amor que recebeu. Mas a paternidade é aventura. Escalada cujo impossível cimo de perfeição apetece, ainda assim, alcançar.
CAFÉ DA MANHÃ
Mariana Kalacheva, Sean Milne
Das aldrabas do baú que encerram amores e amantes as mais das vezes preferimos mantê-las cerradas. Quando, sem apelo nem agravo, memórias irrompem, apetecem torniquetes para que delas nada escorra – fluidos, carícias, junção de peles e corpos e ilusões e risos doutrora.
A magia de momentos, pela distância temporal revelados enganosos, com asas invisíveis sobe em voo do baú fechado não carecendo de chave que o abra. E assim deve ser. Libertar o encerrado em gaiola de frechas curtas. Dar corda ao certo e aos erros em idos. Que voem, à solta. Que pelas conclusões analíticas desviemos o caminho, sendo adequado, ou voltemos a passadas direitas com o horizonte previsto, quiçá destinado.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros