Michael Godard – “100 Bill Full House”
“Visitemos por momentos alguns cenários exóticos, com rios de crocodilos e mares de tubarões, territórios sem dó nem piedade à boa maneira de um Joseph Conrad no seu Coração das Trevas. Estes perigosos animais que aqui vivem parecem-se imenso com pessoas: comem, dormem, uns têm cabelo, outros serão carecas, guiam automóvel, falam ao telefone, riem-se, e, pasme-se, até choram e amam (ouvi dizer algures). A grande diferença está na sua alimentação, que se resume a quantidades ciclópicas de dinheiro.
Mas o que é afinal o dinheiro, o moderno dinheiro?… Bem, será melhor começar por dizer que existem três tipos diferentes de dinheiro: o dinheiro factual, que é aquele que recebemos ou pagamos em troca de um bem ou serviço; depois existe o dinheiro virtual – fundamentalmente um imenso oceano de dívidas mundiais (todos os países têm dívida, e daí não vem mal ao mundo, pelo menos até certo ponto), que circula como matéria transaccionável nos bancos e entidades financeiras, e que, como tal, se encontra contabilizado nos balanços de quem as detém como activo (não existe realmente, não tem contrapeso fiduciário em moeda física, mas é um valor activo); finalmente, surge um dinheiro que também existe de facto mas que é tratado oficialmente como se não existisse – o chamado dinheiro sujo, proveniente de todos os tráficos e crimes mais ou menos abjectos deste nosso planeta. Isto é o dinheiro moderno.
Eis agora o que os crocodilos e demais feras exóticas fazem com estas três espécies de dinheiro. Com a crescente liberdade que foi entregue aos auto-denominados mercados (muito por culpa do lavagante-tigre Ronald Reagan e da sua amiga-da-onça Margaret Tatcher, nos idos de Setenta), foram criadas miríades de satélites financeiros que se regem por normas quase nulas: as sociedades off-shore, onde toda e qualquer operação é possível sem ser taxada ou sequer supervisionada. Uma das operações mais interessantes destas sociedades off-shore resume-se a uma coisa bem simples: através da venda de participações financeiras em sociedades de investimento que trabalham fundamentalmente com títulos de dívida pública ou privada, captam muito do dinheiro desclassificado que lhes é entregue pelos mais perigosos animais deste mundo – as hienas dos cartéis de droga, do tráfico de armas e de tudo o que é crime organizado.
Assim, estas sociedades – que em muitos casos pertencem a bancos e entidades financeiras de renome mundial (ou nem por isso, como era o caso do «nosso» bacoríssimo BPN…) – dedicam-se fundamentalmente a transportar fortunas feitas no submundo do crime para a superfície oficial das dívidas soberanas e dos títulos de participação no capital de empresas em todo o mundo. Nada mais limpo — digamos.
Quero com isto dizer que a banca mundial está infectada, que os banqueiros e demais operadores financeiros sabem disto muito bem e nada fazem para o impedir, tornando-se por discreta omissão em inevitáveis parceiros do crime organizado? Sim, é isso mesmo que eu quero dizer, e ainda acrescento que também muitos políticos estão neste rol de apanhados, embora na posição mais habitual de eunucos executantes regiamente pagos.
Uma das mais perigosas desculpas do pensamento liberal (leia-se da selvajaria neo-liberal, não do Liberalismo) baseia-se numa imagem clara que certamente já nos ocorreu a todos alguma vez na vida, ainda que por certo em circunstâncias muito menos gravosas: «Se eu não o fizer, qualquer outro o irá fazer na minha vez…». E esta premissa dá direito a tudo. Porque quando um banco oferece um determinado produto financeiro a um qualquer cliente, este só muito dificilmente conseguirá saber em que é que o seu dinheiro vai ser efectivamente aplicado. O que permite concluir que até o mais pequeno e modesto investidor pode ser cúmplice (ainda que completamente anestesiado) da maior máfia de droga sul-americana ou do mais torcionário dos «bokassasas» dos diamantes de sangue, tudo isto através do banco onde mensalmente deposita o seu ordenado ou pensão! É terrível, esta verdade sumária.
Ora bem: é com este tipo de sangue podre que a economia mundial está a ser sobre-alimentada há mais de três décadas. Perguntar-me-ão, talvez, o que tem este descontrolo das autoridades financeiras a ver com os excessos absurdos das dívidas soberanas dos chamados países do Sul, onde a de Portugal se insere.
Arrisco dizer que tem tudo a ver. E a razão parece-me igualmente simples: a verdade é que o chamado dinheiro sujo paga no seu processo de oficialização uma elevada franquia à banca mundial em regime off-shore; tal liquidez extra tem, por sua vez, de entrar no circuito legal para a sua oficialização ficar consumada – e aí atingimos os anos de ouro em que todo este processo de transfega encharcou os mercados financeiros mundiais com dinheiro a juros tão baixos que seria quase um crime desperdiçar semelhante oportunidade. Então, apoiados nos financiamentos da banca ao preço da uva mijona e na conhecida solidariedade comparticipativa da União Europeia e dos seus vários organismos, as cigarras do dos tais Países do Sul – fartas da sua vidinha de sempre – desataram a gastar, a pôr as formigas a construir auto-estradas e pontes, e estádios, e empreendimentos, e mais auto-estradas , e novos aumentos de ordenados para as cigarras (temos em Portugal o mais caro banco central do mundo em termos de ordenados de topo)… As cigarras do Sul desataram a gastar o que realmente não era delas, sublinhe-se – mas sim dos seus estados soberanos e respectivos povos. E só por isso as cigarras merecem ser punidas.
Por fim, certo dia, o próprio sistema financeiro descobriu que estava viciado e não controlava nada nem ninguém. Lançou alertas e desconfianças, como o nosso pobre emir de Boliqueime no tempo dos gatos e das lebres. E o processo de ascensão abrandou, parou, e começou a recuar – exibindo então os grandes castelos de areia e as caves cheias de pipas de ar e nada. E a pirâmide, claro, ruiu.
A moral desta falsa fábula fica ao critério de cada um. Sei apenas que existem todas as possibilidades de haver uma qualquer moral – por muito má que ela seja. E certo é que nesta altura do campeonato não há um único ser humano que possa dizer o que vai acontecer a qualquer uma das milhentas variáveis de que é composta esta crise doentia e medonha. Por fim, conte-se também com os que muito têm ainda, e que tudo farão para continuar a ter: nestas quantidades o dinheiro é uma droga exponencialmente viciante, e as feras são, como todos bem sabemos, bichos de muito sustento.”
Nota – Crónica publicada aqui.
CAFÉ DA MANHÃ
Mark Sanislo – Gilpin Fun Michael Godard
Tômbola de quermesse paroquial. Beata. Gira e, em vez de caneca ou urso peludo, sai branco o talão. Mas pode ser o contrário. Como ganho o bem cobiçado por todos os embezerrados até parar o ponteiro.
Envergonho-me de jogar neste casino fiscal. De antes jamais me haver preocupado com faturas onde inscrito o meu número de contribuinte. De ter sido má cidadã, pior, persistir na convicção de ser tão culpado quem rouba a vinha como quem faz ronda no portão. E sinto culpa pela mudança de atitude perante o fisco. Porque nas minhas contas em nada posso fugir às garras dos impostos, entendo os pobres explorados, alvos fáceis dos roubos. Os maioriais colocam em ‘offshores’ rendimentos e safam-se de impostos como magrelas entre pingos de chuva. Pelintras como eu ficam à mão de semear.
Se jamais foram do meu gosto jogos de sorte ou azar, se nunca recebi nem uma caneca nas quermesses beatas, decidi iniciar-me nesta tômbola fiscal. Nem é pela economia paralela – cá se fazem, cá se deveriam pagar fosse oleada e eficaz a justeza da máquina do fisco. É mesmo pelo fruir dos ridículos do sistema que os governantes engendraram. Pelo assalto sistemático às minhas algibeiras puídas que dura e dura e cansa.
CAFÉ DA MANHÃ
Michael Godard
Há vinte anos durava o casamento. “Por paixão”, afiançava ele. Não houve crise dos três, sete ou nove anos. Ou não dera por elas – “coisas de mulheres amuadas cujas razões deixam secretas e um gajo não adivinha nem entende”. Pelo sim, pelo não, dava-se por culpado e apaparicava-a até à volta da normalidade. “Uma mulher gosta de dizer às amigas: _ Aprendeu a lição e anda à minha roda como um cordeirinho. Fazia-lhe as vontades por umas horas ou um dia e a coisa resolvia-se.”
“Quando vieram os filhos, ela não via outros sóis ou luas. Como se eu tivesse cumprido a missão e só fosse preciso como pagante, tarefeiro e pronto-socorro de avarias. Tudo bem, pensava; a vida dos casais é assim e, seguro de assinar o ponto conjugal e trazer bem-estar à família, não seriam alguns imperativos da carne por fora a beliscarem o amor que lhe tinha. Miúdos mais crescidos, economato de vento em popa, julgava de volta à mulher a alegria que me apaixonara. Iludi-me. O que veio foi o ramerrão. Um nevoeiro frio e espesso. A dose massiva das enxaquecas. Pelas culpas que arrastava e pela família, conformei-me.”
“Estranhei a mudança na manteiga – um sucedâneo magro e ensosso. Desapareceram as bolachas que eu trincava ao serão. O sumo do meu pequeno-almoço sofreu um downgrade - marca branca do supermercado. Quando sumiram as azeitonas quis saber a razão – «ninguém as come excepto tu. Compra-as! E não te esqueças de levar o meu carro à revisão e mandar vir o homem para tratar do jardim e da piscina». Voltei à estratégia antiga. Num fim-de-semana e numa segunda-feira ficou tudo num brinco, excepto as farruscas da nossa vida. Não havia passado uma dúzia de dias, trouxe-me o papel do divórcio. Murro seco. Dobrei-me na dor. No pesadelo. Mas assinei tudo. Fui um gajo porreiro. Hoje, sei: fodeu-me com aquela da revisão, do jardim e da piscina.”
CAFÉ DA MANHÃ
Michael Godard
Quem se alheia do tecido social arrisca progressivo desentendimento dos outros e de epifenómenos que marcam o tempo em que é. Na frescura da manhã, ouvido o disparar dos lucros da Santa Casa da Misericórdia à conta da doudice aguda e abrangente pelo «raspa» das Raspadinhas. Raspa quem pode e quem não possui proventos que satisfaçam dignamente a sobrevivência. Porta-moedas mais gordo, esperança comum. Adição a este tipo de consumo, risco também comum. Não raro, é esgotado em raspadelas, fração substantiva do salário. As dívidas chegam depois.
Cartão de aparência inocente – barato e à venda em qualquer quiosque seja de esquina ou não -, responde, de imediato, à ânsia do saber se por baixo do abracadabra em forma de película a raspar há pilim a receber. Euromilhões, jogos online, exigem mais paciência e/ou recursos de suporte.
O trevo sedutor, endoudando os mais recetivos ao vício do jogo, leva muitos de volta ao tinir das moedas nas máquinas dos casinos donde haviam saído a custo. E se não é o tratado a diabolização das Raspadinhas, é preocupante quando um povo náufrago em vez de procurar boia segura se apoia a jangadas de cartão.
CAFÉ DA MANHÃ
Michael Godard
Notícia tal qual ouvi e li:
A obscuridade das contas nacionais, a ignorância da real tragédia económica e financeira em que mergulhámos contribuem para a descrença dos portugueses nos governantes. E se têm razão! Quanto são capazes de ler e entender de ‘fio a pavio’ o Orçamento de Estado? Ininteligível pelos códigos utlizados, é documento para especialistas, jamais para o cidadão comum. Ora, sendo estes os pagantes das faturas do país, merecem, no mínimo, a consideração de lhes ser permitido averiguá-las em detalhe e de modo fácil.
Como quem não deve, não teme, inexistindo «rabos de palha» que, conhecidos, seriam motivo para escândalo e fogueira, os governantes encaracolam-nos. Desconfiança sistemática, boatos atemorizadores são consequência, bem como a desequilibrada balança das contas portuguesas. A sistemática vigilância pública nas intenções e desvios orçamentais é de eficácia sem defeito. Obedece a provérbio d’antanho: “São Brás do Coito desafoga um para afogar oito”.
CAFÉ DA MANHÃ
Arthur Braginski, Michael Godard
Ontem, há um ano ou nunca aconteceu? _ Não importa! Que a estória avance. Pelos quotidianos cheios, pelas vontades que vão e vêm, pela saudade de um charuto e conhaque partilhado ao som de jazz, chão atapetado como assento, pelo diálogo vertido e reflectido sobre sinais que do tempo vivido em Portugal e no mundo eram correntes, a urgência na mensagem recebida de pronto. Telefonema posterior e teimoso caído no silêncio programado do aparelho da mulher. Mutismo. Resposta escrita, passados eram instantes ao ter arribado idêntica saudade no outro lado da urbe. A coincidência de um ter visto do outro imagem no Facebook lembrando contacto desaparecido da rede social - o automatismo do sistema ignora e não rotula ausências deliberadas. Olhara, dissera ele depois, uma e muitas fotografias da omissa presença. Adviera o sentimento de falta. Isso fora de manhã, contaria à tarde, horas antes de rebate ter soado e imposto digitar caracteres breves no teclado minúsculo do móvel. Daí o telefonema e a mensagem/resposta pelo meio do dia descido.
Ontem, há um ano ou jamais acontecido? Tendo sucedido, um automóvel fez-se à estrada. No apartamento em zona nobre, vozes duas límpidas e alegres como antes. Memórias comuns. As transgressões. A clandestinidade que pica, adormece e acorda sem aviso prévio. O apetite pela conversa única que dois seres, específicos, enreda. Enredou na margem do rio, no tapete que a madeira escura do soalho cobria, no sofá para dois da sala/península porque rodeada de livros por todos os lados, excepto num. Em todos, o novo (des)conhecido de um par que se deseja. E foi. E foram mais uma vez amantes. E saíram ordenados por bússolas diferentes.
CAFÉ DA MANHÃ
Não vivem nela, mas trazem de renda uma quinta. Semeiam, regam e colhem. Zelam pelos vivazes e pelos vegetais que plantam. Em vez de frutos, alfaces e favas, obtêm bens simbólicos na forma de pontos. Como quaisquer rendeiros, quem não trabalha não «manduca». Apodrecem árvores e o semeado. Mas contam os vizinhos que podem ofertar bicharada e sementes para enriquecer e reanimar a quinta. Mais que vizinhos, são amigos. Solidários e generosos. Quantos mais, o lucro sobe.
Curiosa pelo empolgamento de queridos próximos, constituí quinta(l). Tudo morto, soube ontem. Sendo má quinteira que não visita, nem nada faz pelo terreno que em sorte lhe coube, o plantio não resistiu. Murchou. Feneceu. Felizmente, mais atenta aos solos reais. Neles, desafogados, crescem pinheiros, árvores de saborosos frutos entre Junho e Dezembro, alfazema que colho e enche sacos de linho bordados, depois, cheirosos em gavetas. Sinto o aroma, piso a terra, embevecem-me as nozes gordas, avelãs e os figos. A fruta luz. Com os pimentos e as abóboras enchem de cor o solo escuro. O rendeiro por conta nada paga, salvo ajuda no jardim da casa provinciana que traz num brinco. Ainda assim remunerado porque o sorriso, a disponibilidade e a boa disposição do Sr. Mário não estão cotados no mercado dos salários.
Talvez por saber e sentir riquezas tamanhas, não me entusiasme bonequinha virtual andando de uma lado para outro simulando obra feita na Farmville duma rede social. “A Tale of Sex, Money, Genius and Betrayal”, escrito por Mezrich, conta o parto do Facebook. Como pais, alunos da Universidade de Harvard. Obra polémica que nos EUA tem dado que falar. “Elliot Schrage, porta-voz do Facebook, já reagiu ao livro: «Ben Mezrich aspira a tornar-se a Jackie Collins ou a Danielle Steele de Silicon Valley»." A polémica segue nos capítulos seguintes.
Não lerei, é certo, a obra. Não cuidarei a quinta da boneca. Serei vizinha, doarei bens que ao quinteiro traga pontos. Prefiro sentires outros. Reais. Consistentes. Por eles perdi a virgindade num charuto partilhado, molhado, condimentado. Sem descrição fica o prazer do reconto onde a personagem terceira foi, por opção, em vez de um Cohiba um Monte Cristo.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros