Dzvinka Stife, autor que não foi possível identificar
Corria o primeiro dos anos quarenta. Por esse tempo, ainda a igreja das Aldeias não acomodava todos os católicos que assistiam aos terços e missas dominicais em assentos dignos. Na nave central, apenas bancos de madeira, de quem os trazia, encostados às paredes; vazio o espaço restante. No lado direito, mulheres de Alrote, no esquerdo, de S. Cosmado. As chegadas primeiro tomavam cómodos nos bancos, as que por um nico se atrasavam sentavam-se no chão, as longas saias cobrindo as pernas. Na cabeça um lenço cujo atar separava gerações: as mais velhas com ele em nó sob o queixo, as mais jovens prendiam-no atrás sob o cabelo penteado em carrapito ou em duas tranças cruzadas rentes ao pescoço. Aceitavam com naturalidade que as damas poderosas tivessem direito a lugar cimeiro, fixo, próximo e à esquerda do altar, marcado pelo respectivo prie-dieu – genuflexório com a base provida de almofada em veludo, associado ou não a uma cadeira. As senhoras donas consideravam adequado verem assim exaltada a distinta condição.
Porque a miudagem ficava junto das mães, a catraia espigadota no pensar, dez anos cumpridos, confundi-a tão vigorosa diferença marcada até na missa. Congeminou proeza com um amigo da catequese, dando-se o caso dela ser sobrinha-neta do pároco e ele filho do sacristão. Da ideia ao concreto, uma semana. Domingo seguinte, pela manhãzinha, escapuliram-se para o interior da igreja e às almofadas dos prie-dieu deram sumiço. Como se nada fora, assistiram à catequese.
Até os pais chegarem para a missa, brincaram no adro com os amigos, vigiando quem chegava na espera das madames. Uma a uma, dirigiram-se para o respectivo prie-dieu. Não vendo as almofadas, cochichavam entre elas. Durante o ofício religioso recusaram ajoelhar ou assento - nem na longa homilia do prior cederam à tentação de descansarem as pernas. Ofício terminado, voaram para na sacristia informar da ofensa padre e sacristão. Ruborizadas pelo escândalo público, a cacofonia instalara-se. Os dois homens viram-se da “cor da abelha” para acalmar ânimos, fechar a igreja e irem ao almoço que se fazia tarde.
No adro, homens saídos do coro e mulheres da nave comentavam o arrojo, sorriam com malícia enquanto era especulado quais os descarados, garotos pela certa, que daquela se haviam lembrado. Em casa, «apertaram» os filhos: _ se tinham sido eles, se sabiam quem o fizera fosse dito na hora. Mas nada. “Moita carrasco”. O mesmo sucedeu com os culpados. Ela repetia: _ Alguém foi. Dali não saía. Idêntica atitude teve o cúmplice, ambos com pavor de incorrerem na mentira, pecado, cedo ou tarde, a confessar. Lá arranjaram engenho para, à sorrelfa, devolverem às damas os coxins.
A responsável, já mulher, anos e anos dedicada aos explorados, afirmaria:
_ Sem que na altura o soubesse, incipiente consciência de classe obrigou-me à revolta. Ofendiam a minha sensibilidade os privilégios das elites perante a humilhação atávica e conformada dos trabalhadores rurais e fabris.
Menos conformada do que julgara, viria a testemunhar depois.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros