Jaime Suárez
De Juan Gelman li apenas “No avesso do mundo”. Tocou-me até ao âmago do espírito. Por ser reduzido o meu conhecimento da vida do poeta, consultei fontes. Adaptei o que li.
“Considerado um dos maiores autores da língua espanhola, o poeta argentino Juan Gelman, de 83 anos, morreu ontem na Cidade do México, onde vivia há mais de duas décadas. Vencedor do Prémio Cervantes de 2007 e do Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana de 2005, além de muitos outros, ele tinha mais de trinta livros publicados – o seu primeiro poema foi escrito aos 11 anos de idade.
Militante comunista, Juan Gelman foi preso em 1963 pela sua atuação política. Ao deixar a prisão, aproximou-se do ‘peronismo’ de esquerda e passou a dedicar-se também ao jornalismo. Em 1975, foi obrigado ao exílio devido à perseguição da “Aliança Anticomunista Argentina (AAA)”.
A “Triple A”, como ficou conhecida, era um esquadrão de extrema-direita que atuou principalmente durante a Presidência de Isabel Perón (1974-1976) e tinha como principal objetivo desestabilizar o governo através do assassinato de políticos e partidários da esquerda, entre eles artistas, intelectuais, escritores e estudantes – posteriormente, a AAA teve forte apoio da junta militar liderada por Jorge Rafael Videla, que chegou ao poder na Argentina com o golpe de Estado de 1976.
No exílio, Juan Gelman viveu primeiro na Itália e depois na França antes de se fixar no México. Viria a tornar-se um símbolo da luta contra a ditadura militar argentina, responsável pelo sequestro e desaparecimento de seu filho Marcelo Ariel e sua nora María Claudia Iruretagoyena, que estava grávida de sete meses – mais tarde o escritor encontraria a neta nascida no cativeiro.
Entre os seus livros mais conhecidos estão No Avesso do Mundo, Com/Posições, a antologia Amor que Serena, Termina? e Isso, além de Hechos y Relaciones e Bajo La Lluvia Ajena. Sua última obra, Hoy, lançada no ano passado, foi inspirada na perda de seu filho Marcelo Ariel.”
Chuva
hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta entra-se em muitos sítios
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo
mas não no mundo
nem numa mulher / nem na alma
quer dizer / nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim
como hoje / que chove muito
e me custa escrever a palavra amor
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e só a alma sabe onde as duas se encontram
e quando / e como
mas que pode a alma explicar
por isso o meu vizinho tem tempestades na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na
mesma noite em que ele amou
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá
como o silêncio que existe entre duas rosas
ou como eu / que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva
e à chuva
ao meu coração desterrado
In
“No avesso do mundo”
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros