Quinta-feira, 26 de Dezembro de 2013

JOGANDO À BISCA COM DEUS

 

 

Dona Surprenant –Two Men Praying                                                                               Mark Young - Unconditional Love

 

Entrava em casa após um «vou-ali-volto-já» ao minimercado do bairro - para mercearia é demais, para frutaria é de menos, para mercado falta tudo, para supermercado é órfão de pai-monstro com múltiplas cabeças. Evito as grandes superfícies vendedoras pelo cheiro que invento e me enjoa – sinestesia obscura, não duvido!

 

Dois idosos caminhavam, lentos, pelo passeio. Sentido contrário ao meu. Um saco em cada mão, antebraços semi-erguidos e angulados, transformava acto comezinho em recreio de musculação. Eles e eu quedámo-nos à mesma, minha, porta. Decorreram segundos embaraçosos. Para meliantes faltava-lhes viço, de pedintes não tinham o ar encolhido e sabujo. Enquanto apalpava os bolsos, pediram autorização para entrar. Ainda a chave procurava o lugar do “Abre-te Sésamo” e começou diálogo (im)provável para quem, por dez minutos, interrompera a doçura doméstica para comprar nozes e avelãs – o resto foi acréscimo que não rabiscara no post-it mental.

 

De oitenta para cima, o mais velho apoiava na bengala o esqueleto ressequido até metade do que um dia foi. O outro, vivendo dos setentas a metade superior, não tinha esvaído, por inteiro, a robustez do corpo alto, esguio e bem apessoado. Apresentaram-se com a dignidade de cavalheiros num salão - podiam ter dito “a menina dança?” e não arregalaria os olhos de espanto. Mas ouvi: “A menina aceita ouvir a palavra do Bem?” Por amor à verdade hesitei no remoque: “tenha a fineza de me somar décadas!” Optei por silêncio compassivo que à bondade/estratégia dos interpelantes não diminuísse efeito. “Acredita na Bíblia?”, e eu nem que sim nem que não; ainda remoía o facto de avançados os anos, quem deles se atrase, um que seja, merecer epítetos de “miúdo”, “jovem”, “rapariga/rapaz mais novo que eu”. “Permita que lhe ofereça este fascículo baseado na Bíblia”. Aceitei e começaram, apartamento a apartamento, o périplo catequista. Antes a novidade dos ‘dandies’ idosos do que duas reformadas devotas de pudim flan, de conversas vazias e cheias de piedade e compreensão e de queixas de doenças e de solidão e do marido rabuja e do filho que nem casa nem gera netos que constem nas fotografias gastas pelo uso que trazem nas malas de mão.

 

Que leva humanos a ensaiarem na fase final da vida a carreira de profetas? A optarem por dias apostólicos, disseminando nos bairros presumidas verdades? A trocarem jogatinas de bisca e damas em recato aconchegado pela venda, porta-a-porta, das palavras de um Deus? E enchem as igrejas nos rituais comunitários que, uma vez por semana, lavam almas para depois as preencherem com exaltada fé em aléns.

 

Quando em cada acordar a desesperança sobe ao mesmo tempo que a persiana do quarto onde revolveram insónias e cobertores, são excessivas as horas pela frente. O pequeno-almoço na casa vazia ou no lar-depósito, a contagem dos comprimidos, a televisão por companhia, o almoço a meio-sal, a sesta entremeada de receio pela ausência ou presença indiferente, vezes demais violenta, dos filhos. Poucos são os idosos que a família, quotidianamente, pode ou quer envolver num abraço quente em afecto. E refugiam-se nas igrejas, mais por medo do que por fé antiga. São os crentes de última hora. São os que na terra já vivem no além. Que carimbam nas missas o passaporte para emigrarem dos anos do vazio para uma eternidade redentora. Assim seja!

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:43
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Terça-feira, 18 de Junho de 2013

EFEITOS DA COISA/CRISE NA SAÚDE PORTUGUESA

 

Andre Kohn, Paola Angelotti

 

Porque os idosos falham nas tomas diárias dos medicamentos receitados ou nem aviam nas farmácias a medicação prescrita ou não adquirem aparelhos auditivos e óculos pela falta de recursos económicos, segue cópia dum texto de hoje na edição online da TSF.

 

“O alerta é do Observatório Português dos Sistemas de Saúde no relatório anual. A denúncia surge pelo segundo ano consecutivo, baseada no aumento da ansiedade e depressão dos portugueses.

 

O documento cita dados nacionais e regionais para concluir que em paralelo com a crise assiste-se a «um aumento da depressão, da taxa de tentativa de suicídio e das mortes prematuras».

 

Os investigadores dizem que os efeitos da crise sentem-se, por exemplo, nas despesas: 20 por cento dos portugueses estão a gastar menos com a saúde, numa percentagem que duplica entre os desempregados.

 

O relatório sublinha que várias fontes apontam ainda para um aumento da ansiedade e da depressão no país. O estudo citado de seguida foca-se na Unidade Local de Saúde do Alto Minho onde vivem 250 mil pessoas. Nessa região, o último ano teve um aumento de 76% nos casos de internamento compulsivo, o que pode dever-se ao agravamento das situações clínicas de doença mental ou à má adesão aos tratamentos.”

 

Nuno Guedes

 

Nota: recomendo a leitura da crónica “Desejos Perversos do Invejoso” publicada na “Dobra do Grito”. Excelente!

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:41
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Segunda-feira, 25 de Janeiro de 2010

ATÉ QUANDO, OCIDENTE?


Antonella Cinelli

 

A Itália apresenta ‘saldo natural’ negativo – diferença entre nados e mortos. Com a Alemanha, o mesmo. Mais países desenvolvidos, ou em vias de tal, não diferem, substantivamente, do panorama. Quando muito, empatam taxas de mortalidade e natalidade.

 

Por cá, oitavo país do mundo mais envelhecido, o dito saldo também foi menor que zero no último par de anos. Causas? Algumas: a famigerada penúria, bem como a diminuição, sem parança, do número das mulheres em idade fértil. No dealbar dos anos 80, o primeiro filho era nascido, em média, aos 23,5 anos; agora, aos 28,4. Para as mulheres procriarem sobra menos tempo útil e vontade pelos empregos instáveis, progressão na carreira e parcos apoios sociais. Quando tínhamos ‘o rei na barriga’, em 2000, a fecundidade foi promissora e reflectiu o desapertar do cinto guterrista. As políticas económicas, dentro e fora, são condicionantes que importam. 

 

No Ocidente, a imigração atenua o decréscimo da natalidade. “Os imigrantes em idade fértil tendem a ter mais filhos e, porque mais jovens, morrem menos.” Para os nativos daqui, ir além da segunda ou terceira gravidez somente para ricos ou para condenados a miséria hereditária. Sem lado de dúvida, perpetuada como gene maldito até que a excepção aconteça e quebre o ADN de espírito.

 

Mais idosos desfiarão ócios, baralhos e memórias nos jardins. Energeticamente insustentável, continuado o desperdício, a sociedade ocidental entrou em declínio. Por tudo, depende daqueles que a procuram oriundos do mundo pobre. A vida escreverá direito mesmo sendo tortas as linhas.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 06:33
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