Sexta-feira, 8 de Maio de 2015

HISTÓRIA DE (DES)ENCANTAR

 

Lindsay Goodwin

 

 

Dos medos ela sabia. Já em pequena temia que a calada da noite encobrisse criaturas que haviam de descer do sobrado e deslizar, manhosas, pela escada. Se da primeira vez teve os pais em socorro, acendendo a luz e provando, com mansidão, que afinal do temido nada havia, nas ocasiões seguintes recebera um beijo e um "“durma, menina, que é tarde."” E dormia, como bem-mandada que era suposto ser. Mas não era. De facto, ficava à espreita, aterrorizada, até provar que nada vindo até ali era porque nada havia para vir. Então, sim, dormia refastelada, a serenidade com ela.

 

 

 

Ao crescer, percebeu que os medos invadem quem lhes arranja lugar. E depois, na euforia das descobertas e afirmações quem tinha tempo ou interesse em olhar para o eu interior? Foi somente anos passados que sentiu temor não centrado na saúde: o medo do abandono. De ser largada. Passar de significante a insignificante. Perder importância no afeto de alguém, como os extremos de crianças e velhos e cães expulsos de casa. Deixar de merecer estima.

 

 

 

Começou a ver de outro modo os afetos. Turvou de ameaça o amor. E nem tinha razões, apenas coisas miúdas que amontoava e somava e temia e a ensombravam mais e mais. Retraiu-se no amor - misturava temor com amor e rancor pelo abandono que não vinha mas sentia e quase o merecia por tanto o temer e a ele ceder. Tornou-se pessoa pior. Ninguém a abandonou, salvo ela que deu ao fresco de si própria. Lutou, respirou fundo e mandou às malvas a vil persona que a habitava. Gostou do que em si e nos outros viu. E tão grata foi a percepção que, exausta de receios, abandonou o ser até aí amado - analisado a frio e sem temores, não merecia um reles medo, quanto mais o seu amor!...

 

 

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

 

Tema composto e cantado originalmente por Dolly Parton

 

publicado por Maria Brojo às 08:00
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Quinta-feira, 4 de Setembro de 2014

SINAIS DE ENXOFRE

Alex Alemany

 

Cheirava mal. A enxofre. Há par de anos, em NY, diplomatas reunidos na Sede das Nações Unidas confirmaram o cheiro do gás. Vinha dos esgotos. O gás sulfídrico também se espalha pelo mundo dos amores. Ao começarem, a exaltação é dita única, maior que todas anteriormente vividas por cada um. Deixa longe Excelsius Deo na terra. Mais tarde, seja pela estafa que as paixões sempre trazem ao psiquismo - poucos aguentam tanto reboliço emocional -, seja pela falta de substância quando os parceiros descem da troposfera e aterram na realidade, de três, uma: redundam em amor feliz como David Mourão Ferreira intitulou livro exemplar na arte de bem escrever ou restam como memória risonha ou como pergunta inquietante: _ Como fui capaz de navegar num veleiro à deriva? Em qualquer dos casos, das paixões, o mesmo acontece com qualquer outra experiência profunda, ficam ensinamentos. Maior conhecimento da persona. Como prevenir exaltamentos sem lastro na barcaça da vida. Evitar projeção de futuros sempre inconsequentes pelas vagas alterosas da corrida do tempo. Pensar e fazer proveito do dia. Não fantasiar o amanhã. Limpar resíduos incómodos na panóplia das atitudes para que o esgoto individual não acumule detritos que tarde ou cedo vêm à tona com insuportável cheirete a sulfídrico.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

Perdoada seja a colocação deste vídeo com imagens de duvidoso bom gosto. Ainda assim, e por não ter encontrado outro permitido nesta plataforma, não resisti - esta foi uma das músicas do começo da minha adolescência.

 

publicado por Maria Brojo às 08:56
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Quinta-feira, 31 de Janeiro de 2013

MÁSCARAS E ‘PERSONAS’

 

Alberto Pancorbo

 

 “Será que mesmo com a capa do anonimato não conseguimos deixar de tentar 'vender' uma imagem?”

 

Divido por três o que, a propósito, a minha subjetividade entende.

 

- É indiscutível a distância entre as personas e o ser que nelas se desdobra. Todos o fazemos sem obrigatório fingimento. Pela infinita capacidade de sermos muitos num – o neto, o filho, o pai, o companheiro, o profissional, o amigo, o portista ferrenho, et cetera – acentuamos componentes da matriz pessoal conforme o papel assumido. O registo único estabelecido entre duas pessoas, ou uma e específico tipo de multidão, cria no(s) outro(s) perceções diferentes do mesmo indivíduo, sem que ele faça por isso. Um colega de trabalho com intelecto superiormente dotado achar-me-á banal. Outro, cujas aptidões encaminham de modo diferente, admirar-me não enjeita.

 

- Há quem a partir de si invente um ou mais personagens. Encene personalidades diferentes. Os mais hábeis conseguem a qualquer delas emprestar coerência. Por rejeição íntima do que em si vêem, ou por cálculo metódico, congeminam outro que lhes habite o corpo e invada o psiquismo. Na literatura e na história abundam exemplos de figuras inesquecíveis que ilustram esta categoria.

 

- Autor de blogue, anónimo ou não, pode colocá-lo ao serviço de alter-ego fantasiado. Obriga a disciplina, consistência, domínio absoluto da escrita e da orientação imprimida ao espaço. Sou demasiado preguiçosa e espontânea para trabalheira, a meu ver, frívola. Por que fingir é dom que não possuo – nos raros ensaios desminto-me em menos de chama ateada por fósforo – o prazer da escrita livre de cautelas que não as do pudor relativo à mui estimada privacidade, deixa livre o fluir do pensamento nas teclas. Omito, observo, reservo o que o senso filtra. Que a consciência brinque à minha revelia, concedo. Máscaras, recuso. Abro exceção ao rimmel que adoça o bater das pestanas, e para as cremosas que ocasionalmente me imobilizam e divertem e pintam de cor vistosa o rosto, com orifícios que o nariz, olhos e boca assemelham a máscara funerária. Da minha vida secreta acabou de sair disgusting inconfidência. Como construir ego alternativo se da espontaneidade não abdico?

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 11:12
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