Picasso – “Jeune Fille Endormi, 1935”
“Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete”: “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados; almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente. No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa. No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço? A professora também anda aflita. Pelo visto, no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer, dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero. (…)
Nota - Texto humorado e imperdível da escritora Telolinda Gersão publicado aqui há breves instantes.
CAFÉ DA MANHÃ
“Le Rêve” (1910) - Museu de Arte Moderna de Nova York. Autor: Henri Rousseau, (21 de maio de1844, Laval/ 2 de setembro de 1910, Paris). Estilo: arte naïf. Género: alegórico. Contemporâneo de Picasso, Wassily Kandinsky, William-Adolphe Bouguereau e de Jean-Léon Gérôme, entre outros.
“Yadwigha num belo sonho
Tinha adormecido suavemente
Ouvindo o som de uma flauta (…)
CAFÉ DA MANHÃ
Modigliani por Picasso Amedeo Modigliani Portrait of Jeanne Hebuterne
Pessoa que muito estimo e sabe da minha ânsia de mais saber nas artes plásticas, recomendou-me o filme. Mais fez: colocou-mo à disposição. «Nadas» da vida adiaram ócio em que o desfrutasse sem neurónios à bulha devida a preocupações imediatas. Num fim de tarde, eu e a casa postas em sossego, houve tempo calmo do tempo para o ver. No filme, a minha subjetividade declara irrelevantes falhas de realização, planos do cenário repetidos, alguma inabilidade na iluminação, ‘et cetera’ – orçamento baixo, pensei.
Justificações da dispensa de olhar ácido sobre o filme: o percurso dum homem transportado aos limites do viver, a intensidade emocional debitada no ecrã, a ambiência do princípio do século vinte numa sociedade artística do ‘bas-fond’ em Paris à mistura (Renoir e Picasso, exceções) com mecenas pomposos, a pesquisa fervilhante dum além artístico ao costumado na época, a rivalidade (ou atração de génios?) entre Modigliani e Picasso. E se li o filme classificado como dos piores de sempre, a minha discordância vai ao ponto de o considerar um dos filmes para não esquecer e rever. Não diminuo assim a excecionalidade do “Pollock” dirigido por Ed Harris e estreado em 2000. Tão pouco o faço em relação à história fictícia de “Rapariga com Brinco de Pérola”, 2003, realizado por Peter Webber onde o pintor Joannes Vermeer é tratado.
Desde há muito, Amedeo Modigliani é um dos meus pintores de eleição. O enamoramento cresceu ao sentir-lhe a técnica e, mais que tudo, a alma numa temporária que me levou ao Thyssen em Madrid. É que se visitar museus faz e sabe bem, são nas temporárias dedicadas a um só artista que mais aprendo sem dispersões. Na falta delas, agendei para este fim-de-semana “Os Fantasmas de Goya”. Darei notícia do visto e sentido depois.
CAFÉ DA MANHÃ
Em Madrid, larguei o meu vício de testemunhar cada madrugada. Amanheci com vagar, mantive o hábito do sumo de laranja e um café - o "americano" foi a escolha. Deambular sem pressa pelos jardins do hotel, perder-me nos vitrais genuínos, as uniões em chumbo provam-no, as formas do arvoredo que filtram. Depois, sair e redescobrir uma cidade que, pela visita anual durante toda a infância e adolescência - ali era adquirido material e vestimentas para o ano letivo a iniciar -, jurara aos vinte e cinco anos, não mais voltar. Assim foi nas duas décadas seguintes. Atravessar Espanha, sim, mas somente pelo ar. A norma interior seria quebrada cinco anos atrás, conquanto mantivesse Madrid arredada do percurso cujo objetivo era Poitiers. Porque sempre amei o País Basco, deste não prescindi. Com Biarritz o mesmo. Entesouro memórias lindas dessa travessia. Par de anos depois, houve regresso a Madrid para visitar as exposições temporárias de Picasso no Reina Sofia, de Modigliani no Tyssen. Viagem soberba pelo visto e porque feita deliberadamente em carris - sair de Lisboa ao fim do dia, dormir em couchette e acordar na estação de San Martin de La Vega. Regresso idêntico. Para a mulher que ama comboios, melhor era impossível.
O resto da manhã e princípio da tarde até ao almoço tardio, passado em lojas de arte. Já na véspera, a loja do Tyssen me tinha feito cair em deliciosas tentações. Mas foi na "Arte Stilo", logo a seguir à Toledano das magníficas montras (ver acima) mas com recheio feito «pra turista ver», ambas no Paseo del Prado, que me deixei levar pela qualidade das peças expostas - Klint, o checo Alphonse Mucha, Hopper; Dali, Miró, Picasso inevitavelmente.
As imagens traduzem o entusiasmo na espera da visita às onze salas dedicadas à temporária de Dali. O "Pássaro Lunar" de Miró suportou-me o peso.
Visitada a mostra, recompus-me da desilusão no terraço do 3º piso. De facto, apenas seis obras emblemáticas constam, as restantes são de períodos menores ou indefinidos do artista, excetuando as dos primeiros anos na caminhada. Nestas, sim, matéria, traço perfeito, investigação bem patentes. Nas seguintes, é o «lambido», a facilidade dos contornos a preto, ausência de matéria. Usar ou não o óculo, tanto faz - a perspetiva mantém-se, frequentemente, numa bidimensionalidade pobre. Os hologramas são banais, as esculturas melhores sem que espanto seja consequência. Maravilha em Dali a rutura com o até ele feito em pintura, com o domínio do traço se o tratado é o corpo humano. Remata a exposição uma patética tentativa de voltar à técnica impressionista. De tão má, julgo difícil esquecê-la.
Ia a tarde mais que meada, de volta ao hotel para balanço do espírito assoberbado com o visto. Horas após, saída para a janta no restaurante mais antigo do mundo - o Botin. Entre outras, a especialidade rainha é o leitão de vinte e um dias. Deixa longe o de Negrais que odeio, o da Mealhada, empata com o do Mugasa aqui na maravilha da aldeia de Fogueira, Sangalhos. É repetido que Hemingway do Botin dizia ser o melhor, que Goya nele havia lavado pratos enquanto aguardava ser admitido na Real Academia das Belas-Artes. A ligação que sugiro merece exploração adequada, embora surja a página dedicada à origem e influência artística do Botin.
Não tenho por hábito ser exuberante em lugares que desconheço. Mas se a tuna do Botin, vestida segundo a tradição medieva e composta de excelentes vozes e tocadores, me dedica o "Coimbra é uma Canção" a emoção extravasou.
No regresso para a deita - na memória, a pintura do recanto escondido que acolhe o Botin -, outro vitral me esperava no hotel.
CAFÉ DA MANHÃ
Vídeos a não perder. No primeiro, critérios para a seleção das obras no Reina Sofia; no segundo a decisiva influência de Gala em Dali.
Jackson Pollock
O número 20 da Rockfeller Plaza, Nova Iorque, recebeu ontem caça-tesouros de obras de arte contemporâneas num leilão da Christie’s. A obra “Number 19” de Jackson Pollock pintada em 1948, um dos anos do período de ouro do artista, atingiu o valor de quarenta e cinco milhões de euros. O trabalho de Roy Liechtenstein em que, no espírito da Pop Art que o carateriza, recriou “Mulher com Chapéu de Flores” de Picasso rondou os quarenta e três milhões de euros. Em terceiro lugar dos recordistas, um quadro de Jean-Michel Basquiat, “Dustheads”, foi arrematado por trinta e oito milhões de euros. Com este leilão e pela receita obtida – recorde mundial -, a Christie’s levou a dianteira à Sotheby’s.
A pintura de Jackson Pollock foi, à época, primeiro, odiada, em seguida, louvada, graças não só à imposição nos meios artísticos da técnica do artista, mas pelo que representava – emanações da alma, do inconsciente, da emotividade. Após o Wioming onde nasceu, estudou em Los Angeles e decidiu-se por viver em Nova Iorque na modesta casa de um dos irmãos e da cunhada. Ali é visitado pela pintora Lee Krasner com quem viria a casar anos mais tarde. Sob a influência de Lee, é moderado o alcoolismo bem como as tempestades psíquicas que o atormentavam e a quem com ele privava.
Durante a conjugalidade com Lee e através dela, vem a conhecer e fascinar Betty Guggenheim que o inicia na elite das artes que a rodeava. Adquiriu, finalmente, notoriedade. Todavia, os padecimentos antigos nunca o abandonaram, conquanto abrandassem em intervalos de tempo sempre curtos demais.
Jackson Pollock - Summertime - Number 9A
Pollock viria a deparar-se como uma técnica que o fascinou: pingos de óleo levemente arrastados sobre papel ou tela sem que o pincel fosse o instrumento principal na construção duma obra feérica. Neste período era já figura pública dos Estados Unidos - entrevistas, documentários, artigos na imprensa. Se destes apreciava as loas, a sua misantropia era contrária a intrusões na privacidade. Mas, para melhor conhecer Pollock, nada como assistir ao extraordinário filme dirigido por Ed Harris em 2000 que mereceria óscar. Nele, a célebre frase na edição de Agosto em 1949 da revista Life: “Jackson Pollack: será ele o maior artista vivo dos Estados Unidos?” Foi.
CAFÉ DA MANHÃ
Não sou diferente daqueles que procuram o Google em busca de informação. Aberta a página, alguns doodles obrigam a embasbacar-me logo ali, esquecida do fim em vista. Se interativos, brinco com o «rato» e jogo prazenteiramente. Como tantas vezes. Como hoje. Fiquei a saber quem foi Frank Joseph Zamboni Jr., nascido em Eureka, Estados Unidos, precisamente a 16 de Janeiro de 1901. Inventor, concebeu um veículo que na atualidade remedeia defeitos nas pistas de patinagem. Postumamente viria a receber o prémio National Inventors Hall of Fame.
Mas outros doodles me encantaram e encantam. Dum já por aqui dei conta. Mais houve. Dos exemplos possíveis escolho o que homenageia Picasso.
Outro é relativo a Magritte.
A minha venerada Química neste aqui.
Espero os encantamentos que irão chegar. Bom mesmo é iniciar manhã de trabalho assim!
CAFÉ DA MANHÃ
Geoorge Owen
Esquecido o telemóvel na mala de faz-de-conta, própria dos arranjos excecionais, tocou. Para lá de sensata, a hora. Esquecidos sessenta minutos de diferença entre o relógio dela e o dele.
_ Estás bem?
_ Nem bem, nem mal. «Meia-foda». Já saiu.
Por não ser mulher de ficar sem entender, quis saber o que era coisa aquela.
_ Nem é, nem deixa de ser.
_ Como assim? Ou é, ou pela metade é à mesma. Menor, talvez.
_ Palpar e esfrega. Ela não quis mais.
Remoeu o porquê. Deles e delas, ouvia semelhante. Diferente o durante e o balanço. Elas não fornicaram, eles tiveram o assim-assim. Para a mulher, copular é penetração. Para o homem derrame fluido, haja ou não entrar e sair, vaivém que no mesmo culmine.
Em que ponto da espiral genética, ou em que meandro cerebral se alojará a diferente leitura que do mesmo faz um homem e uma mulher? Construções da civilização? Registos biológicos distintos no feminino e masculino? Para o homem basta o despejo que mulher receba no rosto ou na pele? Não. Se lhe ligara àquela hora, fora poucochinho o momento.
Por serem múltiplas as vidas, o (des)entendimento no discurso entre os géneros não se restringem ao sexual. Interpelavam-na códigos inúteis. Sabia que ele dizia as mulheres prolixas. Porque românticas, julgava-as frágeis aos violinos quando o fito masculino era estritamente cartesiano – vazar órgão. Que constatava, desiludido, as inúmeras fêmeas que, naquele particular, ombreavam com ele. Porquê? Por não abdicarem da lança que, desde sempre, fez dos homens caçadores? E se a mulher usar arma semelhante na busca de sustento interior? Galdéria ou frívola? Nem um pouco! Reforço da estima que a si dedica e nem sempre atinge o satisfaz. Antes pessoa que lê e se adapta aos sinais enviados pelos tempos. Que cresce. Distingue desejo e amor. Como os homens. Como deve ser. Adestrados uns e outros para a contemporaneidade. No melhor e no pior.
Ao desligarem, retomou o pré-sono. O José de Lima fora encantador. Como o jantar no Blakes. Explicara a escolha da Oude Kerk para a exposição – Saskia, a primeira mulher de Rembrandt, ali sepultada. O românico iria bem com as formas e veladuras que distinguiam a pintura da Olga. Idos da pintura italiana e do Vélazquez recriados. O Garcia Lorca presente nas palavras a óleo.
_ Uma sorte estar disponível para a data que ajustei. Amanhã levo-a para sentir o espaço.
_ Quero! A que hora me vai buscar?
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros