Maria Zeldis – “A la Fenêtre"
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Dizia Saramago que mesmo o escrever mal as mais das vezes arrebanha ideia, uma boa ideia. Porque arredia nesse tempo, contava meses em que não movia dedos no exercício da escrita. Pode dar nisto a obrigação de honrar nome, obra apaixonante e feita, prémios, condecorações e uns tantos bibelôs recebidos, alguns a merecer tranca na arrecadação. Nem a demora de assunto para livro ou galardões lhe davam cuidados.
Não faltando ideias, torço o crivo que as separe por peso, tamanho ou bondade. Atamanco frases, tenho um gozo danado e quem tiver paciência bastante para me ler que se avenha com a (in)digestão do cozinhado. Alternativa simples: passar adiante.
Prato de sustança.
É bem-amado o cheiro a castanhas assadas à mistura com o do Natal. É desmiolado pendurar nas ruas enfeites natalícios quando o metal é curto e as dívidas tentaculares. É atropelo o carrocel de festas que o consumo inventa. Inexistindo, são as promoções lojistas, esmeros da publicidade e sorteios. Melhor só nas feiras d’antanho onde o ‘vendedor da banha da cobra’ tinha léria sem defeito, garganta e pujança ao vozear monólogo como ator consumado. A propósito: quem se lembra do saudoso António Assunção debitando em ritmo demoníaco texto encenado pelo Joaquim Benite da Companhia de Teatro de Almada?
Sobremesa
Sendo que as palavras saltam como castanhas quentes, por pouco não olvidava o que chegou da memória e é maleita comummente impingida às crianças:
_ O que quer a menina ser quando crescida?
Era farta a cabazada de vezes que amigos e conhecidos dos pais mo perguntavam, em particular na visita ritual das Santas Festas. De início, embasbaquei - nunca em tal houvera pensado. Depois, exibi sensatez no projeto de médica como verbalizava a família. A partir daí, borreguei: dizia o que em primeiro ganhava a meta da gana. Até ao dia em que a prima Carminho, hipócrita, «peneirosa» e malvada (isto ouvira dizer na cozinha à Lúcia), caiu na esparrela do mesmo indagar. Nem hesitei:
_ «Flausina» como a prima. Se me dá licença, vou brincar.
Pendulando o cabelo, virei costas.
Café
Não se entretivesse o diabo em enredos, bichanei inquietude à Lúcia:
_ «Flausina» é profissão, não é?
Nota: texto publicado, há instantes, aqui.
CAFÉ DA MANHÃ
Victoria Moore, Kristin Abraham
Houve menina que bem conheci. Fez-se mulher. Privou com avós e bisavós e ‘tios-bisavós’, mais tios-avós até idade adulta avançada. Teve infância pobre à conta da falta de irmãos e primos directos - respeitasse o novo acordo ortográfico e escreveria ‘diretos’ - desde três gerações; rica pela família que a gerou (o ‘rico’ não significa óbvio – tem a ver com experiências inusitadas de que guarda memórias d’ouro).
O avô era músico autodidacta. Lia pautas como criança industriada que, de cor, repete tabuadas. As filhas cantavam primorosamente, eram prendadas em artes várias (domésticas incluídas). Uma foi p’ra freira e conservou a tradição de cada camada geracional contribuir com um ou mais elementos para casório divino. Pelos muitos castos(?) da família, houve descendente única. Transviou – não fez votos de castidade e de pureza ou pobreza. Insubmissa, escolheu trilho diferente dos mandadores: o comum. Nunca se arrependeu, mas venera crítica e afectuosamente donde e de quem veio para o mundo.
De regresso ao avô - viajar para tempos mais recuados dava livro e não crónica. Compunha músicas e letras/poemas. Amante da mulher que lidava com o quotidiano e do marido/amor respeitava utopias, teve casamento feliz por décadas até se despedir da vida. A mulher, namorada sempre, sobreviveu-lhe um ano. Primo exímio em guitarra mais colegas tocadores da canção coimbrã eram visitas da casa. Desafiavam-no para serenatas e tocatas até horas-meninas da madrugada, para aventuras como fazer serenata no cimo do Cântaro Magro; quem o conhece de longe vislumbre a aventura. Burro atestado com víveres, violas e guitarras subia com eles. Loucos deliciosos!
Nos estios, noite chegada, a casa vibrava com acordes. Tertúlias que arrebatavam amigos e personalidades de artes várias. Uma delas, Irene Lisboa, a menina já não conheceu mas leria a obra em que desancava tias-avós. A pequenota levantava-se pé-ante-pé, sim, porque era mandada cedo para a cama, e, sentada num vão da escada roendo maçãs, ouvia e ria com as anedotas, as picardias sobre política e literatura que intervalavam música.
A mulher não herdou talentos - limita-se a fazer uso menor do aprendido no regaço meigo da família.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros