Aguarela de Júlio Rodrigues
Rematámos a noite na Quinta das Lágrimas. Antes, os nossos passos estalaram o cascalho do parque rente ao Mondego pródigo em vetustas tílias e carvalhos. Os papiros antecipavam a subtil corrida das águas serenas. Como nós. Tu debruçado sobre o rio, eu aproximando-me de mansinho. Ontem, ou anos atrás? Deliberadamente confundo tempos e momentos de afetos encastoados. Como joias de família que aguardam num cofre a luz e a pele.
Na conversa, evitámos a avareza. Mas houve silêncios desejados e alegremente consentidos. No velhinho e vazio largo das «Ciências», lembrámos itinerários - as descidas das ruas torcidas com empedrado gasto em que a chuva mais depressa fazia deslizar os pés do que o corpo. O sol poente avivava as cores do casario amontoado até ao céu, entrecortado pela alegria do arvoredo da Sereia. E foi falador o silêncio que tu e eu respeitámos, receando quebrar a magia, precária como todas.
Consertáramos pernoita na Quinta das Lágrimas. A fartura regada do jantar exigiu cafeína e palavras e caminhada pelas ruas escusas que tricanas e bandos de capas negras em idos calcorrearam. Dizem e acredito no fado de Coimbra como loa à beleza e à eterna crença no amor. Na entrada do palacete da Quinta, a Dona Inês e D. Pedro em obras do Pinto-Coelho detiveram-nos. (...)
Nota: texto integral no “Escrever é Triste”.
CAFÉ DA MANHÃ
Abel Manta
Quem não for com missas é favor passar adiante. Fiquem as palavras para os resistentes. O sétimo dia em que Deus terá descansado ficou oficializado ao domingo. Nas cidades grandes, é pretexto para fugas, o nada-fazer, limpar os metros quadrados que as paredes domésticas limitam, “passeios-dos-tristes”, para namorar ou para discussões conjugais. O freguês pede, o domingo dá.
Nos meios pequenos, os itens continuam semelhantes. Todavia, há acrescentos de monta. A missa congrega crentes e não-crentes. À volta dela, gira a manhã do dia. A partir das oito, batem portões e saem os madrugadores. Cuidados no trajar, os casais de idade são os primeiros a cumprir o ritual. Deixam para depois a feitura do almoço. Havendo família a juntar, mais tempo sobra para os paparicos que, amorosamente, reservam aos filhos e netos. Quem entende que o domingo também existe para remanso nos lençóis lavados, escolhe outra missa. Duas horas mais tarde, batem outros portões.
O centro urbano/rural acumula homens nas esquinas sombrias à beira da Igreja Matriz. Há «entra-e-sai» no café fronteiro. Na esplanada, servida também por tílias, ocupam lugares costumados os clientes sem era e da terra. Novatos ou passantes ficam com as sobras. Ponto de observação privilegiado, enche o olhar de quem está. Feitos os cumprimentos e o escrutínio, chegando a hora aprazada que o sino não lembra, continuam sentados turistas, descrentes e comodistas. Quem preza observar os mandamentos católicos entra na igreja. Muitas mulheres, poucos homens, cabelos brancos, coro afinado e treinado na função, homilia morna - aprendi que alegria espalhafatosa não faz parte das normas do reino de Deus. Acabada a função, todos dizem ámen e eu com eles. À saída, nova rodada de beijinhos e apertos de mão. Sabem como as amêndoas na Páscoa - na época, são delícia, durando ano inteiro, talvez perdessem o gosto especial.
Naqueles lugares, a hora da missa dominical acaba por constituir celebração ecuménica - reúne ateus, católicos de batizados, casamentos e funerais, católicos de todos os dias, coscuvilheiros e fãs da exibição. Mais abrangente, não há.
CAFÉ DA MANHÃ
Do espólio familiar (autor das letras e da música Artur Brojo) e de S. Cosmado-Aldeias.
“Do alto da serra,
Olhei pra baixo e vi
A igreja da minha terra
A casinha onde nasci
Vejo além ao longe
Um regato e uma fonte
E uma linda capelinha
Tão branquinha lá no monte
Vejo da minha janela
Toda a casinha singela
Nesta aldeia de encantar
Vejo lindo panorama
Que logo a atenção me chama
Para depressa adorar
Vejo as ovelhas no monte
Correr a água da fonte
Por enormes ribanceiras
As moças ao regressar
Depois do trabalho acabar
Cantam lindas ramaldeiras.”
Enquanto na “Sociedade Industrial” –Amarantes, as lançadeiras iam e vinham, obedeceu ao ritmo e compôs a música do “O meu Amor é Pastor” (poema escrito ao serão do mesmo dia). É considerado património do folclore do Concelho de Gouveia.
“O meu amor é pastor
Já anda a aprender a ler
Já comprou uma cartinha
Para depois m’escrever
Rapazes e raparigas
Cantai cantigas
Batendo o pé
Também canta o meu amor
Que ele é pastor
Ai lariló-lé.”
Artur Brojo tinha profunda consciência da opressão dos trabalhadores pelos donos da terra coadjuvada pela sua experiência fabril (referido em “Maria e Sario”). Embora desse trabalho a quem precisava, jamais explorou o suor alheio. Exemplo duma quadra musicada que, segundo os recontos, criou e o povo a que tinha orgulho de pertencer cantava sob o peso da enxada.
“Ao malhar da borda
Vinho à malha
Se o patrão não paga
Fica o pão na palha.”
Com António Pinho Brojo e o amigo deste, André, nas férias em S.Cosmado, ambos exímios tocadores de viola e futuros catedráticos de Farmácia na Universidade de Coimbra, nos serões da família e por onde calhava, tocavam até de madrugada.
O António, o André mais o Zé Roque faziam serenatas de encantar. O poema seguinte fez parte duma em favor da, ao tempo muito jovem, tia Maria do Céu, vinda ela de férias do Colégio do Sagrado Coração de Maria, na Guarda, onde prosseguia estudos.
“Ao longe
Ao cair da tarde
Quando no mar
O sol lentamente
Se vai apagar
É que eu penso
No teu olhar
Tão meigo e profundo
Que me deixa a sonhar.”
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros