João Abel Manta - A Família dos Pachecos João Abel Manta - Namoro
Era um país a preto e branco. Havia o bem e o mal. A virtude e o pecado. O permitido e o proibido. Pessoas certas e erradas - comunistas, ladrões, democratas, assassinos, livres pensadores, trafulhas, irreverentes, prostitutas, liberais, bêbados, artistas ousados, ateus. Somente na riqueza havia três categorias: muito ricos, remediados e pobres (a maioria). Era um país de filtros. Uniformes nos níveis de porosidade, passava o situacionista e ficava retido o perigoso cruzado a vermelho pelos censores. Os humores e a tacanhez dos polícias do espírito filtravam a informação, os livros, os filmes, a música e o teatro. Era um país de famílias: as poderosas e as outras. Mas famílias. Pai, mãe e filhos, ascendentes e descendentes, todos com estado civil nos vértices de um triângulo: viúvos, casados ou solteiros. Estes como pessoas menores sendo adultos e mulheres. Uma depressão no feminino - doença dos nervos, diziam - podia ter uma de duas razões: pesadas mágoas se casada, falta de homem se solteirona (estado avançado da degradação das mulheres que ninguém quis). Era um país de homens. Governavam o povo e as famílias, detinham os cargos superiores, pertencia-lhes a exclusividade da vida militar e doutras profissões. Era um país analfabeto, rural, com elevada mortalidade infantil, pejado de deveres e diminuído em direitos, salvo a bebedeira, o prostíbulo e o futebol. Era um país sem dúvidas. Do nascer ao morrer. Acabada a primária, era sabido que, podendo a família sustentar estudos, o destino seria a Escola Industrial ou o elitista Liceu. Os meninos pobres para se instruírem iam para o seminário, enquanto as meninas pobres faziam a lida da casa, trabalhavam nas fábricas ou no campo. O rapaz sabia que a guerra o esperava no alvor da juventude e, caso sobrevivesse, no regresso empregava-se e constituía família. As raparigas casavam cedo para amarem e procriarem com decência; trabalho fora de casa apenas por necessidade ou capricho da abastança. As mulheres eram velhas aos quarenta anos. Havia a certeza da morte ser precedida pelo chamar do padre e pela extrema unção – caso contrário, iam direitos ao Inferno e a família incorria em grave risco de escândalo social perpetuado até à terceira geração. Portugal legitimou dúvidas, opiniões e deu-lhes voz sem medos faltam dois dias para quarenta anos. Bem maior não há.
CAFÉ DA MANHÃ
CAFÉ DA MANHÃ
Gosto de vigiar alvoradas. As imagens duma Lisboa amanhecida, a voz do Carlos do Carmo, o acompanhamento ao piano de Bernardo Sassetti fazem deste vídeo um tesouro. (Composição original de Sérgio Godinho)
LA Hughes watercolor collage “To Die For” LA Hughes Pop painting “Go Forth…”
A pasta das finanças mudou de rosto e de mãos. É o costume: quando é chegada a condição de moribundo, ou se desligam as máquinas de suporte de vida, ou é tentado remédio novo ainda sem créditos firmados e que pode dar o golpe final no desgraçado. Para os crentes é altura de pedir conselhos à Senhora de Fátima como o patrão maior fez há tempo pouco.
Vem a propósito a letra da música “O Charlatão” a que o Sérgio Godinho deu voz.
“Numa ruela de má fama
faz negócio um charlatão
vende perfumes de lama
anéis de ouro a um tostão
enriquece o charlatão
No beco mal afamado
as mulheres não têm marido
um está preso, outro é soldado
um está morto e outro f´rido
e outro em França anda perdido
É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra
Na ruela de má fama
o charlatão vive à larga
chegam-lhe toda a semana
em camionetas de carga
rezas doces, paga amarga
No beco dos mal-fadados
os catraios passam fome
têm os dentes enterrados
no pão que ninguém mais come
os catraios passam fome
É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra
Na travessa dos defuntos
charlatões e charlatonas
discutem dos seus assuntos
repartem-se em quatro zonas
instalados em poltronas
P´rá rua saem toupeiras
entra o frio nos buracos
dorme a gente nas soleiras
das casas feitas em cacos
em troca de alguns patacos
É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra
Entre a rua e o país
vai o passo de um anão
vai o rei que ninguém quis
vai o tiro dum canhão
e o trono é do charlatão (bis)
É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra”
CAFÉ DA MANHÃ
Autor que não foi possível identificar
Olhou os guindastes e os trolhas que lhe construíam novas paredes. O sobe e desce dos ferros. Mudança em frente. Que os móveis ficassem enquanto ela partia. Criar sítio novo. Casulo. Levar as telas, esculturas e cerâmicas. Fotografias de família que desemolduraria. Trapos, adereços e calçado. Álbuns e livros. Pouco mais. Com parcimónia, rechear o apartamento branco. Pintá-lo com sedas e musselinas. Talvez limas e ameixas. Talvez o fúcsia sintetizado pelo Leonhart Fuchs.
No minimalismo, reviver Elsa Schiaparelli e a rivalidade com Coco Chanel entre as duas guerras que rasgaram o mundo. Lembrar Dali, o vestido com lagosta impressa, o gigantismo do chapéu em forma de sapato. Arrojos idos e vindos. Fúcsia – a cor das meias dos toureiros, símbolo que rejeitava da Ibéria. Fascínio pela indecisão entre rosa, lilás e encarnado, pela conjugação de arte e ciência. Provocação que Yves Saint Laurent retomara e a seduzia ao rever na pantalha das memórias o laço imenso debruçado na Torre Eiffel.
Apeteceu-lhe abandono nos braços férreos do guindaste ali tão perto do aeroporto. Que a levasse e depositasse no ‘seisièmme arrondissement’. Em vez de trolhas, a Eiffel em fundo. O fúcsia enlaçado. O rio estrada de barcos-moscas com turistas em busca dos recantos e símbolos de Paris nas bordas.
Despedira o Santiago com habilidade. Evitara a “minha ou a tua?”, o “deixas o teu e levamos o meu, ou o contrário? Por mim, esteja contigo, as coisas não têm valor.” Estava certa de si: nem apetite, nem sentimento. Poisou-lhe um beijo flor nos lábios. Abreviou o fim sem entremeio de coxas, sussurros e gritos. Lembrou outra mão que um dia lhe amordaçara a boca, não fosse escândalo para os vizinhos a banda sonora do prazer. Ele menos livre que ela julgara. Preso a conveniências.
Por esse tempo, a janela larga sobre o Sado era fronteira de vícios inconfessados quando a noite chegava. Adivinhados. Depois, confessos. Ela ensaiara fuga vezes demais. Sem êxito. Atravessava a ponte e volvia sempre ao Sul perto. E não o queria, querendo. Guerrilha longa demais.
O Francisco dera-lhe mão e afeto que a puxara do inferno - carne e sentimento - pelo simulacro de amor que para si ela inventara e ele desesperava. Tão fácil mentir a quem era! E fora amante e apaixonada do Francisco, fizera planos _ vida junta num dia longe, porque não? Mas soubera da verdade que a mentira dele provou. Deles fez réu num processo sem delongas no tribunal dos sentimentos que acomodava. Quando a consciência era fogo esperto, recorria ao mesmo tribunal e fazia despacho breve.
Nota: publicado ontem no “Escrever é Triste”
CAFÉ DA MANHÃ
Chin H. Shin, Virgil Elliot
Faltava o café para terminar mais um almoço na catedral gastronómica de Gouveia, “O Júlio”, assomo ao exterior por instantes pensados breves. Na rua estreita, sem trânsito automóvel, terminada em degraus para quem sobe, esplanada prolonga restaurante e café do mesmo dono e nome, quase em frente um do outro. O dia quente pedia intervalo em que a brisa tímida lambesse a pele. Daí a saída.
Tomado assento no silêncio da ruela, ao fundo e subindo com vagar, a Sr.ª D. Luzita Manta. Vinha tomar café, parte da dose de adrenalina diária que os portugueses não dispensam, como escreveu Robert Wilson. De pronto, levantei-me. Fui ao seu encontro. O reconhecimento não foi imediato – as três semanas de férias serranas nunca proporcionam cumprimentar todos aqueles de quem gostamos. Olhando-me, atenta, nem meia dúzia de segundos passados, diz:
_ Brojo!
Aquiesci, já entre abraço e beijos amigos. Perguntando pelas mulheres mais velhas da família, houve o que “sim, estavam bem, na altura debicando sobremesa que desde a infância lhes enchia medidas – papas de milho”. No entretanto, surge a filha mais velha, Emília Manta, para muitos, contando-me, a querida ‘Mila’, ‘Milita’, ‘Milinha’. Repete-se a alegria e, enquanto a mãe fazia companhia à mãe e à tia, ficámos em alegre converseta. Conhecendo-lhe o acerto do espírito crítico e atento, atrevi:
_ Aturas-me para detalhares as lutas dos operários de lanifícios daqui nos anos sessenta e setenta?
_ Quando quiseres; porém, devias conhecer a Maria do Céu, essa, sim protagonista e conhecedora mais profunda.
Como soe afirmar, palavras não eram voadas, desce a escada Maria do Céu Ferreira de Jesus. Foi impressiva a presença – mulher elegante, ponderada, olhos negros que reluzem. Sendo informada de quem eu era e ao que vinha, acordou num encontro a três, pelas cinco da tarde seguinte em casa da Milita, porta à frente da que flanqueia entrada para edifício de granito onde nasceu o tio-avô, o pintor Abel Manta, ícone das artes plásticas nacionais a que Gouveia não regateou tributos como seu filho genial.
À hora e dia aprazados, subo os degraus de madeira cheirosa e brilhante pela cera. Logo após, entra a Maria do Céu que tanto me intrigara e, selvaticamente, admirei. Na saleta fresca, decorreu a conversa e, pela ausência de gravador, digitado o ouvido.
“Nasci em Gouveia. Ainda pequena, fui para o “Patronato”, instituição dirigida pela D.Zulmira Bellino, mulher do dono da fábrica de lanifícios “Belina”. Na casa repartida em secções – primeira infância, segunda e jovens adolescentes que não frequentavam a escolaridade/luxo para os débeis proventos -, eram ensinadas «prendas» femininas da época: limpar, lavar roupa e chão, pô-lo lustroso, bordados, rendas, tricô e outras artes que das meninas fizessem esposas perfeitas e mulheres submissas. Muitas operárias deixavam ali as filhas enquanto labutavam, em pé, oito horas diante das máquinas fabris.
Frequentei o “Patronato” até aos dezasseis anos. Também a JOC – Juventude Operária Católica. A origem social de cada membro determinava estar e percurso, e influiu no meu idear social. Em 1963, por vontade minha candidatei-me a operária da Sociedade Industrial/Amarantes e fui admitida na tecelagem predominantemente masculina. Ambiente de pessoas conscientes da opressão, repressão e exploração que as vitimava. Solidárias, todavia. Dispostas a emperrar, subtilmente, o sistema, existindo colegas injustiçados. Prova houve com o “trabalho por objectivos”: eram premiados aqueles que muito produziam. Falsa questão, constatámos; trabalhar «corte» liso é rápido, um de xadrez demorado. Horas de labor idênticas, produtividade diferente. Sabíamos que na distribuição dos «cortes» eram jogadas simpatias hierárquicas. Como reagir? _ Simples: eram somados os prémios e divididos de igual maneira por todos. Entendia, vividamente, num lado estar o capital, no outro a força laboral.
Escasseando trabalho, o operário laborava seis dias e ganhava quatro. Na “Sociedade Industrial”, era majorada a repressão se comparada com outras. A adesão à EFTA e a guerra colonial aumentaram vertiginosamente as encomendas, mormente pelo fabrico de têxteis destinados ao fardamento das Forças Armadas. Entre sessenta e sete e sessenta e oito, os patrões chamavam trabalhadores da Covilhã de molde a satisfazer a produção. Aumentaram conflitos; prática comum laborar sob chicote, ameaças e castigos – sendo crianças, duplicados pela ausência de «féria» devida ao afastamento compulsivo, pelos pais que sentiam no bolso a falta de ajuda para alimentar as bocas da família.”
(Continua)
CAFÉ DA MANHÃ
No quadro da quase insolvência do Estado, o nosso, especialistas declaram insensatos aumentos na Função Pública. Alegam inexistente margem para aumento da despesa. Reduzi-la é prioritário para retoma de credibilidade no espaço financeiro internacional. Elevar encargos incompatível com redução da despesa estatal. Aconselhado: tendo em conta a deflação, manter estável a fatia do lobo público.
No ano que finou, foi significativo, relativamente aos anteriores, o aumento nos vencimentos dos empregados pelo Estado. Manobra eleitoral? Talvez! Porém desacompanhada de maior produtividade, como provam dados objectivos. Pau de muitos bicos, este: congelados os salários nesta fracção importante dos trabalhadores, o consumo não aumenta tal como a colecta de impostos directos: IVA e IRS, entre outros. Subtraído fluxo numa das entradas principais de renda para a governação. Mais difícil a convalescença económica do país.
Porque a maioria dos funcionários públicos é paga com pouco, convém olhar atento à vida e sobrevivência árdua que faz deles esforçados resistentes. Ganham quase nada mais do que o salário mínimo. Se este foi acrescido, porque não aumentos com valor fixo nas pagas laborais que dele se abeirem? E que todos, pobres e ricos ao serviço do comum, produzam o máximo. Viver por conta é desonesto. Rejeito. Porém, não podem ser os mais desfavorecidos, funcionários públicos ou privados, a custear despesismos ociosos em tempos de crise.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros