Domingo, 20 de Fevereiro de 2011

BRANCO MUITO, NEGRO E MAIS

 

Nela, passos avulsos ou direccionados. O som deles, da chuva obstinada no cair de céus plúmbeos como há um ano na Madeira aconteceu e, pela intensidade, devastou. No chão, o desgaste de pisadas ancestrais inferido pelo polimento das pedras talhadas em cubos irregulares e pelos desenhos basálticos. Nesta calçada, a modernidade do desenho manifesta concepção recente. Artífices, mais que mandados obreiros, conjugam e lapidam pedaços de rochas.

 

 

Um cão, outro animal ou pura imaginação conceptual desligada de qualquer existência anterior? Nem importa a resposta quando é arte o assunto. Cada um vê o que inventa. E lembro estória testemunhada. Artista plástico inaugurava mural no imponente hall duma sede bancária. Entre os presentes, deambulava comentário: _ O leão está muito bem concebido (esgalhado diria um pintor), não achas? Resposta dos envergonhados ou convictos, vá alguém saber a motivação: _ Disfarçado, mas perfeito. O símbolo do banco, afinal. Alguns, mais afoitos: _ Qual leão? Não vejo nada! E não havia leão nas linhas definidas por cores. Jamais ao autor tal ocorrera. Porém, diplomata, evitava desmentir o pensar sobressaído.

 

 

Calçada outra que intervala placas coloridas dum material pobre. Vistos de perto, ervas e terra molhada despontam entre os cubos rugosos. Trabalho imperfeito ou adequado aos que os pisam em corridas e caminhadas protegidas por ténis? Sendo o lugar propício ao desporto de ar livre, é hipótese merecendo ponderação. Nos finais das semanas, calções e t-shirts abandonam gavetas e protegem corpos agredidos por quotidianos sedentários. E há sombras de palmeiras projectadas em novo ondular.

 

 

Lisa como espelho, parece. Deve aos séculos e à chuva a aparência. Cuidados a redobrar, não se adiante, mais que o devido, um pé além do outro. Solas rugosas, ideais para calcorrear a Baixa desta Lisboa amada em horas húmidas que não pelo desejo de ser vista, pisada, revisitada. Rareiam os passantes. O espelho da calçada portuguesa, ainda assim, reflecte o céu como soe fazer o mar.

 

 

É tempo de surgir o amarelo da Carris sobre carris. Mancha/cor em movimento cíclico. Quem lá vai dentro e quem de fora o vê desse asas ao pensamento recuaria épocas e imaginar-se-ia enfiado em paletós, chapéus, sapatos abotinados, ou saiotes e folhos e frou-frou pelo roçagar das sedas. O eléctrico ainda chama o desejo como Tennessee Williams escreveu e na Sala Garrett do D. Maria II foi encenado. Na outra margem da cidade grande, a calçada portuguesa é substância d'arte.

 

 

Nem estrelas nem sete-estrelo astronómico - concepção outra de integrar preto e banco. Simples. Péssima como qualquer calçada para o calcorrear dependurado em saltos afilados. Adeus capas protectoras!, olá sapateiro! e rasgos no couro ou verniz que revestem a elegância das alturas dos saltos. Mulheres defendem-se da violência olhando atentas o chão e depondo o peso apenas no garantido à sobrevivência do que calçam. Em «bicos-de-pés» quase.    

 

CAFÉ DA MANHÃ

  

 

publicado por Maria Brojo às 09:28
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