Sábado, 20 de Agosto de 2011

MARIA EMÍLIA MANTA E MARIA DO CÉU FERREIRA DE JESUS (I)

Chin H. Shin, Virgil Elliot

 

Faltava o café para terminar mais um almoço na catedral gastronómica de Gouveia, “O Júlio”, assomo ao exterior por instantes pensados breves. Na rua estreita, sem trânsito automóvel, terminada em degraus para quem sobe, esplanada prolonga restaurante e café do mesmo dono e nome, quase em frente um do outro. O dia quente pedia intervalo em que a brisa tímida lambesse a pele. Daí a saída.

 

Tomado assento no silêncio da ruela, ao fundo e subindo com vagar, a Sr.ª D. Luzita Manta. Vinha tomar café, parte da dose de adrenalina diária que os portugueses não dispensam, como escreveu Robert Wilson. De pronto, levantei-me. Fui ao seu encontro. O reconhecimento não foi imediato – as três semanas de férias serranas nunca proporcionam cumprimentar todos aqueles de quem gostamos. Olhando-me, atenta, nem meia dúzia de segundos passados, diz:

_ Brojo!

Aquiesci, já entre abraço e beijos amigos. Perguntando pelas mulheres mais velhas da família, houve o que “sim, estavam bem, na altura debicando sobremesa que desde a infância lhes enchia medidas – papas de milho”. No entretanto, surge a filha mais velha, Emília Manta, para muitos, contando-me, a querida ‘Mila’, ‘Milita’, ‘Milinha’. Repete-se a alegria e, enquanto a mãe fazia companhia à mãe e à tia, ficámos em alegre converseta. Conhecendo-lhe o acerto do espírito crítico e atento, atrevi:

_ Aturas-me para detalhares as lutas dos operários de lanifícios daqui nos anos sessenta e setenta?

_ Quando quiseres; porém, devias conhecer a Maria do Céu, essa, sim protagonista e conhecedora mais profunda.

 

Como soe afirmar, palavras não eram voadas, desce a escada Maria do Céu Ferreira de Jesus. Foi impressiva a presença – mulher elegante, ponderada, olhos negros que reluzem. Sendo informada de quem eu era e ao que vinha, acordou num encontro a três, pelas cinco da tarde seguinte em casa da Milita, porta à frente da que flanqueia entrada para edifício de granito onde nasceu o tio-avô, o pintor Abel Manta, ícone das artes plásticas nacionais a que Gouveia não regateou tributos como seu filho genial.

 

À hora e dia aprazados, subo os degraus de madeira cheirosa e brilhante pela cera. Logo após, entra a Maria do Céu que tanto me intrigara e, selvaticamente, admirei. Na saleta fresca, decorreu a conversa e, pela ausência de gravador, digitado o ouvido.

 

“Nasci em Gouveia. Ainda pequena, fui para o “Patronato”, instituição dirigida pela D.Zulmira Bellino, mulher do dono da fábrica de lanifícios “Belina”. Na casa repartida em secções – primeira infância, segunda e jovens adolescentes que não frequentavam a escolaridade/luxo para os débeis proventos -, eram ensinadas «prendas» femininas da época: limpar, lavar roupa e chão, pô-lo lustroso, bordados, rendas, tricô e outras artes que das meninas fizessem esposas perfeitas e mulheres submissas. Muitas operárias deixavam ali as filhas enquanto labutavam, em pé, oito horas diante das máquinas fabris.

 

Frequentei o “Patronato” até aos dezasseis anos. Também a JOC – Juventude Operária Católica. A origem social de cada membro determinava estar e percurso, e influiu no meu idear social. Em 1963, por vontade minha candidatei-me a operária da Sociedade Industrial/Amarantes e fui admitida na tecelagem predominantemente masculina. Ambiente de pessoas conscientes da opressão, repressão e exploração que as vitimava. Solidárias, todavia. Dispostas a emperrar, subtilmente, o sistema, existindo colegas injustiçados. Prova houve com o “trabalho por objectivos”: eram premiados aqueles que muito produziam. Falsa questão, constatámos; trabalhar «corte» liso é rápido, um de xadrez demorado. Horas de labor idênticas, produtividade diferente. Sabíamos que na distribuição dos «cortes» eram jogadas simpatias hierárquicas. Como reagir? _ Simples: eram somados os prémios e divididos de igual maneira por todos. Entendia, vividamente, num lado estar o capital, no outro a força laboral.

 

Escasseando trabalho, o operário laborava seis dias e ganhava quatro. Na “Sociedade Industrial”, era majorada a repressão se comparada com outras. A adesão à EFTA e a guerra colonial aumentaram vertiginosamente as encomendas, mormente pelo fabrico de têxteis destinados ao fardamento das Forças Armadas. Entre sessenta e sete e sessenta e oito, os patrões chamavam trabalhadores da Covilhã de molde a satisfazer a produção. Aumentaram conflitos; prática comum laborar sob chicote, ameaças e castigos – sendo crianças, duplicados pela ausência de «féria» devida ao afastamento compulsivo, pelos pais que sentiam no bolso a falta de ajuda para alimentar as bocas da família.”

 

(Continua)

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 16:31
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Quarta-feira, 17 de Agosto de 2011

EM 1946, MARIA E SARIO

Donato Giancola e autor que não foi possível identificar

 

No concelho de Gouveia, como noutros das Beiras, década de quarenta e par das seguintes, acabada a instrução primária dos afortunados que ‘iam à escola’, as crianças ajudavam ao sustento da família por mor da pobreza extrema. Iniciadas na lavoura, na pastorícia, na lida da casa, na costura, carregavam cântaros de água sobre as cabecitas, alimentavam o porco e bichos de capoeira, do ferro de brasas sabiam o manejo na arte de engomar. Calejavam os pés andando descalças ou, arribado o frio, com sorte, talvez protegidos por tamancos e peúgas saídas de mãos laboriosas no tricô.

 

Porque Gouveia era centro importante no fabrico e exportação de lanifícios, quem podia trabalhava nas fábricas. Frequente, ‘meter pedido’ para conseguir admissão e combinar fábrica com agricultura de subsistência ou jorna ao serviço doutrem. Na indústria fabril, o trabalho era por turnos. Aos dez anos, fizesse neve ou sol, pela madrugada, saíam das camas ou do que dela fizesse as vezes para fazer a marmita e andarem quilómetros – pegavam às oito. No final do dia, a paga era dezena de tostões. Se no Inverno percorrer a distância era sofrimento indizível pelo frio de navalha da montanha, mãos e pés atiçados por frieiras, na fábrica continuava o Inferno: barulho ensurdecedor, homens negros pelos óleos, correias espalhadas, catraios empoleirados em bancos, não chegando aos teares. Ao meio-dia, estrondeava apito para o intervalo da bucha/almoço comida dentro da fábrica, em redor de bidons onde ardia lenha que (mal) disfarçava o gelo nos ossos.

 

Em 1946, na “Belino”, é iniciada paragem laboral – finalmente, acontecia greve devida às desumanas condições de trabalho e aos magros salários. “Nas Amarantes”, uma das fábricas mais importantes do país com setecentos trabalhadores, o mesmo. Mal passada era uma hora, a GNR cerca as unidades fabris, empurram para dentro dos jipes e prendem cerca duma quinzena de homens julgados cabecilhas. O pai da menina que com o filho do sacristão escondera os coxins dos prie-dieu na igreja das Aldeias trabalhava na “Sociedade Industrial”, comummente designada por “Amarantes”.

 

Estando no colégio a já adolescente, ouve contar o que acontecia. Juntamente com o Sario cujo pai era operário na mesma fábrica saem desvairados das aulas e, numa corrida, alcançam a praça de S. Pedro onde guardas, jipes com os presos e multidão se haviam ajuntado. Espreitavam os detidos temendo encontrarem os pais. Saberiam, então, que eles permaneciam dentro da fábrica - ao primeiro, um dos fundadores do sindicato na região que, de pronto, se identificou com a luta, salvara-o a ascendência familiar, isto descobriria mais tarde, ao segundo, a óbvia inocência.

 

Mais tranquilos, correram de volta ao colégio. À entrada, dão com o director que os esperava. Apopléctico de fúria, aos brados indaga porquê o desplante de faltarem a uma aula. O Sario adianta-se e explica a angústia que haviam passado. Sem delongas, o director dá sonora bofetada ao rapaz com dezasseis anos. A Maria, ferida pela incompreensão e violência, questiona-o:

_ “Porque não me bate também? Por ser mulher e sobrinha dum padre?”

 

Durante quinze dias, as fábricas mantiveram portas cerradas enquanto os patrões reuniam e ruminavam procedimentos. Aos poucos, chamaram operários. Admitidos os imprescindíveis pela função especializada e os considerados rebanho cordato.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 09:53
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